Entender a Câmara dos Deputados não é uma tarefa fácil. 513 deputados se dividem em 24 partidos diferentes, que por sua vez têm facções internas e divergências. Para entender melhor como se comportam os deputados federais na hora de votar, o Pindograma analisou os posicionamentos dos parlamentares em quatro votações importantes.
Muitas análises do Congresso se baseiam em todas as votações de cada deputado para gerar grandes grupos de comportamento similar entre eles. No entanto, a maioria das votações no plenário são formalidades e não evidenciam as divisões reais no pensamento dos parlamentares. Por isso, analisar quatro votações importantes com atenção nos permite encontrar alguns grupos que votam juntos nas propostas mais relevantes para a sociedade.
As votações analisadas foram:
- A reforma da previdência que, entre outras coisas, aumentou a idade mínima e o tempo mínimo de contribuição da aposentadoria.
- Uma medida que permitiria o repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) – atualmente destinado apenas à educação pública – para escolas privadas sem fins lucrativos.
- Uma medida que obrigaria empresas a manterem empregados durante a pandemia caso quisessem receber créditos do governo.
- Uma votação na qual a Câmara decidiu proteger o mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB), afastado do cargo pelo Ministro do STF Celso de Mello, mesmo após denúncias robustas de corrupção.
Caso um deputado tenha se abstido em apenas uma dessas quatro votações, assumimos que ele teria votado junto com a maioria de seu partido na votação em que ele não esteve presente. Caso ele tenha se abstido em mais de uma votação, não o incluímos na análise. Dessa forma, deixamos de classificar apenas 46 deputados.
Com base nesse levantamento, chegamos a cinco categorizações ideológicas — a nova direita, a centro-direita, o centro, a esquerda tradicional e a esquerda independente. Além deles, há o “centrão” — grupo com grande diversidade interna que não é muito bem capturada por essas quatro votações.
A nova direita, representada por Carla Zambelli (PSL)
Esse grupo tem 79 deputados, e agrupa boa parte dos apoiadores mais ideológicos do presidente Bolsonaro. Os partidos mais comuns desse grupo são o PSL e o NOVO, que geralmente se mostram a favor de diminuir a intervenção estatal na economia e também assumem um discurso de intolerância à corrupção.
Políticos relevantes da tropa de choque bolsonarista no Congresso, como as deputadas Bia Kicis (PSL-DF) e Carla Zambelli (PSL-SP), se encontram dentro desta categoria. Essas deputadas e seus colegas atuam de maneira similar ao presidente, reforçando, por exemplo, a pauta de costumes conservadores e a flexibilização da legislação de armas.
O destaque que permitia repasses do Fundeb a escolas privadas foi de autoria do Partido Novo. Seus 8 deputados federais todos votaram de acordo com a medida e, mesmo com números partidários pequenos, influenciaram outros deputados de partidos como Patriota, PSD e PSDB. Outro projeto na área da educação caro ao grupo é o projeto que protege pais praticantes do ensino domiciliar (homeschooling) com suas crianças, que deve ser votado logo por ser prioridade do governo.
Paralelamente, o grupo também votou a favor da reforma da previdência e contra a estabilidade de emprego como requisito para que empresas recebessem créditos durante a pandemia. Tais posicionamentos demonstram, novamente, uma posição contrária à intervenção do Estado na economia.
Outro episódio emblemático para essa categoria foi a votação a favor do afastamento de Wilson Santiago. Naquele momento, o deputado Gilson Marques (NOVO) se posicionou dizendo “o deputado está se utilizando do cargo, se utilizando do mandato de deputado federal para a prática de ações ilícitas, esse é o principal motivo pelo afastamento”.
Há também um membro desse grupo que encapsula a falta de coesão dos partidos brasileiros: a deputada Liziane Bayer (PSB-RS). Mesmo sendo parte do Partido Socialista Brasileiro, Bayer defende Bolsonaro e declarou voto em Arthur Lira para a presidência da Câmara, contrariando a decisão nacional de seu partido.
A “nova direita” também inclui o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), que embora venha criticando Bolsonaro nos últimos meses, tende a votar de acordo com o grupo do presidente na Câmara.
A centro-direita, representada por Carlos Sampaio (PSDB)
Com 46 deputados, este é o menor grupo de direita e tem Carlos Sampaio (PSDB-SP) como um de seus proponentes mais relevantes.
Essa categoria inclui políticos relativamente independentes do governo, mas que frequentemente votam com os governistas.
Diferentemente da “tropa de choque” do bolsonarismo e do Partido Novo, a centro-direita votou contra o direcionamento do Fundeb para escolas privadas, e preferiu garantir mais dinheiro para a educação pública.
No entanto, esse grupo votou junto com a “nova direita” na reforma da Previdência, no não-condicionamento de créditos do governo à manutenção do emprego e no afastamento do deputado Wilson Santiago.
A esquerda tradicional, representada por Gleisi Hoffmann (PT)
Gleisi Hoffmann (PT-PR), atual presidente do PT, e outros 76 deputados compõem o maior grupo de esquerda na Câmara.
Após a apresentação do projeto da reforma da previdência, Gleisi escreveu em artigo de opinião para a Zero Hora que a “proposta é claramente contra o povo e contra os trabalhadores”. Escreveu que “ao invés de atacar os privilégios como é preciso fazer, as mudanças vão ampliar a injustiça social em nosso país”. Essa foi uma visão compartilhada por outros partidos de esquerda, como o PDT e alguns membros do PSB.
Sobre o destaque que permitiria repasses do Fundeb a escolas privadas, o deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), que também compõe a esquerda tradicional, afirmou que os proponentes da medida estavam “esquartejando o Fundeb, e cada um está levando um pedaço para casa – filantrópica, Sistema S – todos setores empresariais. O dinheiro do Fundeb é dinheiro público, dinheiro federal”.
Reafirmando a narrativa de defesa dos mais vulneráveis, o PT buscou re-incluir a estabilidade de emprego como um requerimento para receber créditos durante a pandemia. Na ocasião, a deputada Gleisi protestou: “Não é justo que a gente faça uma emenda constitucional que beneficie empresas financeiras e bancos e os trabalhadores saiam perdendo, que não haja como contrapartida a manutenção de emprego”.
Esse grupo também foi favorável à operação que salvou o mandato do deputado Wilson Santiago — embora nenhum membro desse grupo tenha explicado o seu voto. Em outras ocasiões, membros do PT criticaram os excessos e ilegalidades de investigações de corrupção.
Curiosamente, o deputado Tiririca, do Partido Liberal, vota de acordo com a esquerda tradicional. No entanto, Tiririca nunca apareceu junto a um candidato presidencial de esquerda em um palanque. A legenda do deputado faz parte da sustentação oficial do governo Bolsonaro e tem muitos deputados que votam de acordo com a categorização direita tradicional.
A esquerda independente, representada por Marcelo Freixo (PSOL)
Esse grupo tem 42 deputados, sendo o segundo maior da esquerda. A esquerda independente conta com o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e com alguns membros de outros partidos, como o PSB e o PT.
Esse grupo agrega principalmente uma das alas do PSB e membros do PSOL, partido fundado por políticos dissidentes do PT durante o escândalo do mensalão. Políticos de partidos como o PDT e o PT se concentram mais no grupo da esquerda tradicional.
O grupo de Freixo votou junto com o de Gleisi nas 3 primeiras votações, mas foi favorável ao afastamento de Santiago por corrupção. Na ocasião, Fernanda Melchionna (PSOL-RS), que também vota com esse grupo, declarou que a decisão era “sobre se o deputado deve responder e se defender no processo afastado do cargo ou se deve seguir no exercício de seu mandato”, e optou pelo segundo, já que, para a deputada, os crimes foram cometidos pelo uso do mandato parlamentar.
O grupo inclui três deputados que viriam a se eleger prefeitos de capitais em 2020: João Henrique Caldas (PSB-AL), Edmilson Rodrigues (PSOL-PA) e Eduardo Braide (PODE-MA). Curiosamente, o último representa o grupo de oposição ao governador Flávio Dino no Maranhão, e teve apoio tácito de Bolsonaro na eleição para a prefeitura de São Luís.
O centro, representado por Tabata Amaral (PDT)
Tabata Amaral (PDT-SP) e outros 17 deputados compõem o menor grupo da Câmara. O grupo de centro é constituída principalmente por deputados do Cidadania, do PDT e de uma ala do PSB, que têm fortes ligações com grupos suprapartidários como o Movimento Acredito.
Eles votaram junto com a “esquerda independente” em todas as votações, exceto quanto à reforma da previdência. A votação de Tabata em particular teve grandes repercussões, já que seu voto foi contrário à orientação da bancada do PDT. Após aquele episódio, ela começou a ser duramente criticada por políticos dos outros grupos de esquerda e também por eleitores em redes sociais.
Na época, a deputada paulista justificou que seu voto “garantiu a manutenção dos benefícios para deficientes e idosos pobres que recebem o BPC”, além de “regras mais brandas para a aposentadoria dos professores”.
Quanto ao afastamento do deputado Wilson Santiago por corrupção, Arnaldo Jardim (Cidadania), que também está no grupo do centro, declarou que “não estamos abrindo mão de nossas prerrogativas [como deputados], e entendemos que [o afastamento] tem base constitucional”.
Um personagem inesperado que votou como os outros deputados do centro foi Alexandre Frota (PSDB-SP), que foi eleito pelo PSL na onda do bolsonarismo. Em 2019, Frota rompeu com o clã Bolsonaro e passou a criticar seus apoiadores, após um histórico de ativismo de direita.
O “Centrão”
O “Centrão” é o maior grupo da Câmara, com 207 deputados. Ele inclui os deputados que não se encaixam em nenhum dos grupos anteriores. São parlamentares oriundos, em sua maioria, de partidos como o PP, o PL e o Republicanos — que compõem a base do apoio do governo Bolsonaro na Câmara — e de outros como o MDB e o PSD, que preferem negociar sua adesão ao governo caso a caso. O grupo também inclui políticos como Aécio Neves (PSDB-MG) e Baleia Rossi (PSDB-SP).
Em geral, o Centrão está disposto a trabalhar de acordo com os interesses do governo. 96% do grupo votou a favor da reforma da previdência.
O grupo também dá bastante importância aos interesses do empresariado. Um deputado do “Centrão”, Hugo Motta (Republicanos-PB), foi relator da PEC do Orçamento de Guerra e decidiu retirar o artigo 4º da PEC, que obrigava empresas que recebessem créditos a manter seus funcionários. Na ocasião, Motta defendeu que “ao criar um entrave, ao trazermos mais uma resistência para que as micro e pequenas empresas sejam ajudadas, nós não estaremos fazendo bem ao país”. 95% do grupo concordou com a ideia.
Quase todos os políticos do “Centrão” decidiram manter o deputado Wilson Santiago no cargo, votando contra seu afastamento. O advogado do deputado declarou em frente aos deputados no plenário da Câmara que se Santiago fosse afastado, “isso poderia acontecer com qualquer um, com um delegado, uma delação premiada, um juiz de primeira instância pede a suspensão do mandato”.
O “Centrão” se dividiu, contudo, na votação para direcionar recursos do Fundeb a escolas privadas. A maioria dos membros do PL e do Republicanos e do votou para permitir repasses às escolas privadas. É uma medida que tinha o apoio do governo Bolsonaro. Já o MDB, o PP e o PSD não priorizaram as preferências do governo e privilegiaram as reivindicações da deputada Professora Dorinha (DEM-TO), que defendia que o fundo fosse destinado exclusivamente à educação pública.
Alguns dos membros desse grupo são considerados parte do “baixo-clero” do Congresso — isto é, são deputados com menos expressão e visibilidade e que votam com interesses particulares.
Poucos deputados do baixo-clero chegam a ter relevância nacional, e quando têm, nem sempre é pela atuação política. A deputada Flordelis (PSD-RJ), cantora gospel e pastora, é a parlamentar mais conhecida nessa categorização, graças às acusações de assassinato de seu cônjuge. À exceção do presidente Bolsonaro, que ascendeu do baixo-clero à Presidência da República, são raros os casos de políticos dessa categoria que ficam conhecidos pelas conquistas enquanto parlamentares.
Outros deputados notáveis do grupo são Celso Russomanno (Republicanos-SP), o atual ministro das Comunicações Fábio Faria (PSD-RN) e o líder do governo na Câmara Ricardo Barros (PP-PR).
As votações em mais detalhe
A reforma da previdência
A reforma da previdência, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/2019, foi uma das pautas com maior cobertura midiática dessa legislatura até agora. O voto principal do texto-base na Câmara foi o mais contencioso, aprovado por 379 votos a 131. A maioria necessária para uma PEC é de 308 votos.
Ao todo, apenas 3 membros não votaram ou se abstiveram. Com a reforma, a idade mínima de aposentadoria e o tempo mínimo de contribuição foram elevados, além de mudanças nas regras de transição e nos valores dos pagamentos da previdência. Alguns deputados na categoria do centro votaram na reforma após negociações de destaques da proposta, mesmo contra a orientação de seus partidos.
A rejeição de recursos do Fundeb para escolas privadas
A votação do novo Fundeb (PL 4372/2020) procurava renovar o principal mecanismo de repasse de recursos do governo federal para a educação básica. A grande polêmica na votação foi um destaque apresentado pelo Partido Novo, que permitia o repasse de recursos do fundo para escolas privadas sem fins lucrativos, como muitas escolas filantrópicas ou ligadas a igrejas.
286 deputados votaram contra os repasses para escolas privadas, vencendo os 163 que votaram a favor da medida. 64 não votaram ou se abstiveram.
Para os deputados que votaram contra os repasses para escolas privadas, a prioridade do Fundeb deveria ser melhorar o ensino público.
A manutenção de empregos pelo Orçamento de Guerra
A PEC 10/2020, conhecida como o ‘Orçamento de Guerra’, permitiu gastos adicionais para o combate contra a pandemia. Durante a votação, o PT apresentou um destaque que condicionava créditos recebidos por empresas à obrigação de manter empregos.
Os deputados contrários à proposta argumentavam que ela prejudicaria a recuperação econômica e complicaria o auxílio às empresas. Já para os deputados favoráveis, a proposta era uma ferramenta importante para frear o desemprego.
Porém, a ideia foi rejeitada por 329 votos contrários contra 146 favoráveis. Apenas 38 não votaram ou se abstiveram.
A manutenção do mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB), afastado por denúncias de corrupção
O ministro do STF Celso de Mello determinou em dezembro de 2019 o afastamento do cargo de quatro servidores públicos por denúncia da Procuradoria-Geral da República, que os acusou de ter praticado corrupção 16 vezes, levando ao desvio de recursos de construções no interior da Paraíba.
Um desses servidores era o deputado federal Wilson Santiago. De acordo com a denúncia, ele teria recebido R$1,2 milhões em propinas, e perguntado a um empresário da construtora Coenco, “Tu acha que resolve essas coisas sem dar nada a ninguém?”.
Nesses casos, o entendimento do Supremo é de que o afastamento do deputado pelo Ministro precisa ser confirmado pela Câmara dos Deputados. 257 deputados teriam de votar para tirá-lo do cargo.
Ao final, 233 deputados defenderam o mandato de Wilson Santiago, enquanto 170 votaram pelo seu afastamento. 110 deputados não votaram — e como cada abstenção ou ausência foi essencial para manter Santiago no cargo, contamos as abstenções como se fossem um voto a favor do deputado.
Dados utilizados na matéria: Votações da Câmara dos Deputados (Câmara dos Deputados).
Contribuíram com dados: Antonio Piltcher e Daniel Ferreira.
Para reproduzir os dados e os gráficos da matéria, o código pode ser encontrado aqui.
Créditos da imagem: Waldemir Barreto/Agência Senado, Câmara dos Deputados.
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