A apenas alguns quarteirões deste que vos escreve, em uma noite de ventania do outono nova-iorquino, uma multidão assistiu ao democrata Zohran Mamdani proclamar a sua surpreendente vitória nas eleições para prefeito. Mamdani, filho de um professor universitário de e uma diretora de Hollywood, lamentou que “por tempo demais, os trabalhadores de Nova York ouviram dos ricos e dos influentes que o poder não deveria estar em suas mãos”. Ecoou, então, a frase de Jawaharlal Nehru: “chega um momento – raro na história – em que passamos do velho para o novo, em que uma era chega ao fim e a alma de uma nação, longamente reprimida, enfim encontra sua voz”.
Mesmo com a biografia relativamente privilegiada de Mamdani e seu sorrisinho millennial, as falas pareceram autênticas. Naquela noite de novembro, o auditório observado por progressistas e conservadores do mundo todo de fato tornou-se a capital da “People’s Republic of Brooklyn”.
Já em São Paulo, pouco mais de um ano depois da cadeirada do Datena no Pablo Marçal e da vitória do amorfo Ricardo Nunes, a independência da República Popular de Santa Cecília parece improvável. Não há candidatos jovens criando blocos políticos em torno de si da mesma maneira que Nikolas Ferreira ou Renan Santos na direita. É difícil imaginar um político hipotético no Brasil com uma biografia análoga à de Mamdani — digamos, um jovem do PSOL formado em geografia na USP, ex-vocalista de uma bandinha de MPB, com passagens em uma ou outra novela que a mãe produziu — vencendo uma eleição.
Frente a esse quadro, Guilherme Boulos propõe um novo caminho para a esquerda em seu livro mais recente, publicado no início de 2025. É preciso atingir as periferias com “mão no celular, pé no barro” para vencer a “batalha digital pela opinião pública e a batalha corpo a corpo em territórios populares”. Mas, por mais que Boulos tente, o livro propõe muito pouco além de táticas de rede social para as eleições de 2026. Não há uma visão consistente para um projeto pós-lulista.
No livro Pra onde vai a esquerda?, o atual Ministro da Secretaria-Geral da Presidência (leia-se coordenador de campanha) de Lula propõe uma “correção de rota”, pois a esquerda tem falhado em “combater a ofensiva reacionária que ameaça instaurar um fascismo no século XXI”. O caminho do livro percorre uma teoria sobre a ascensão da direita bolsonarista, uma interpretação sobre as razões para as dificuldades do governo Lula III, um guia para a esquerda ganhar nas redes sociais e por fim uma tentativa de providenciar uma visão maior para o futuro.
Parte da sua explicação para a ascensão da extrema-direita pode ser resumida a uma equivocada descrição de neoliberalismo, já criticada aqui no Pindograma. Privatizações teriam acabado com o coletivismo, trabalhadores teriam sido capturados por uma guerra cultural, et cetera e tal. Também há uma crítica completamente desinformada sobre como a “desregulamentação dos fluxos financeiros” permite que detentores do capital disciplinem governos progressistas por meio de “ataques especulativos” no mercado de títulos da dívida. A eterna malta globalista de investidores mal-intencionados que só especula contra governos bonzinhos.
Entretanto, há alguns fragmentos interessantes onde Boulos analisa como o pensamento evangélico e o discurso anticorrupção se mesclaram para criar um jogo onde o “nós” é o povo e o “eles” é o sistema, dominado por elites políticas de esquerda. Criou um sentimento missionário em milhões de brasileiros, “algo que a ditadura militar não foi capaz de fazer em 21 anos”. É extremamente relevante para 2026 a sua conclusão de que “para apresentar sua luta como antissistema, a extrema-direita fez uma operação ideológica – que não deixa de ter sua genialidade – de modificar o conceito de sistema”.
Boulos também previu corretamente a pré-candidatura de Flávio Bolsonaro—para o desespero de Ciro Nogueira—quando ele argumenta que “é ilusão esperar que o bolsonarismo irá desaparecer em nome do bom-senso” ou de uma candidatura pró-mercado.
Suas razões para as caneladas do governo Lula são relativamente simples. A vitória em 2022 dependeu do alinhamento com o centro e elites econômicas, algo que se esvaiu após a aprovação do arcabouço fiscal. Desde então Lula está de equilibrista, tendo que mitigar a oposição do mercado e controlar um Centrão que defende o orçamento secreto a rodo, enquanto a oposição bolsonarista “metralha fake news”. Previsivelmente, o membro do governo atual não quer criticar o governo atual.
Por fim, chegamos à parte mais propositiva do livro. O primeiro passo são as táticas de campanha. São basicamente cinco propostas:
- Unidade de narrativa nas redes sociais;
- Utilizar o algoritmo para apelar para a indignação, para pautar o discurso;
- Promover ecossistemas estruturados de mídia—um “Brasil Paralelo” da esquerda;
- Defender saúde, moradia e educação para apelar ao eleitorado evangélico;
- Presença ativa nos territórios de periferia, a “base” — cursinhos populares, cozinhas solidárias e “poetry slams” (juro que não é brincadeira).
Interessante para antecipar as táticas da campanha lulista em 2026. Mas quando chega a hora da grande visão, de responder “pra onde vai a esquerda”, o leitor tem que se satisfazer com platitudes: “O que falta hoje à esquerda é traduzir a nossa utopia ao século XXI, expressá-la de forma simples e disputá-la na realidade. Estamos perdendo por WO a guerra cultural não por carência de horizonte, mas porque deixamos de traduzir e disputar esse horizonte; enquanto a extrema-direita o faz todos os dias”.
Não há visão nenhuma. A esquerda precisa traduzir a sua utopia, mas não sabemos qual utopia é essa e nem o que “traduzir” quer dizer. O mais perto que o livro chega de alguma sugestão é “resolver a crise climática, a desigualdade crescente no mundo e a destruição do senso de comunidade”. “Já não temos tempo para diagnósticos de Twitter, autoflagelo público e para a eterna cobrança por autocríticas”, escreve o autor, em uma autocrítica.
O problema principal da visão de Boulos é que ela é incapaz de descer do pedestal moralista em que grande parte da esquerda se coloca. Ao rufar dos tambores, a razão para a esquerda ter perdido a classe trabalhadora é cultural, possibilitada pela desregulamentação “neoliberal” da economia e pela expansão das igrejas evangélicas. O fato de moradores de periferia votarem em Pablo Marçal “é guerra cultural na veia”.
O exemplo mais emblemático é uma anedota ao final do livro sobre como uma ativista do MTST contou ao autor sobre um morador de ocupação irregular nas periferias de São Paulo. O senhorzinho se recusava a votar no Boulos por ele “ser invasor”. Questionado pela nobre ativista, o morador de periferia rebateu que não era invasor por ter “pagado R$2 mil pelo meu terreno”.
O final da história não poderia deixar a arrogância moral mais evidente. Semanas após a derrota do autor nas eleições de 2024, a ativista retorna à quebrada do senhorzinho. Ela chega lá para apoiar moradores após um despejo. Boulos reconta como o senhor, reencontrando a ativista, declara: “se o arrependimento matasse…” O autor relembra como a ativista contou a história “com gosto, como uma recompensa de persistência militante”. Grande coisa, a ativista perdeu a eleição e o senhorzinho foi pra rua.
Zohran Mamdani e seu grupo de 100 mil ativistas conseguiram outro tipo de “recompensa da persistência militante”. Diferente de Boulos, ganharam uma eleição majoritária. A campanha de Mamdani foi capaz de convencer até mesmo ex-eleitores de Donald Trump que Zohran era o melhor candidato para governar a cidade, com três propostas concretas: tarifa zero nos ônibus, congelamento de aluguéis e creches gratuitas.
Com o passar do tempo, o plano de governo foi amadurecendo—e, inclusive, trouxe propostas “neoliberais”, como cortar as burocracias para a abertura de pequenos negócios e facilitar a construção de prédios para as incorporadoras. Porém, a campanha de Mamdani nunca abandonou a bandeira do custo de vida.
Como todo bom político, Mamdani também teve muita, mas muita sorte. Seus oponentes incluíam um ex-governador assediador sexual em série, um corrupto e um maluco de uma milícia que protege gente no metrô e que (quase) nunca tira sua boina vermelha.
Seja como for, o discurso disciplinado em torno do custo de vida permitiu a Zohran escapar de ataques incessantes sobre a falta de experiência e suas posições anti-sionistas (tema relevante na cidade mais judaica do mundo fora de Israel). Sua campanha conseguiu mobilizar a classe média que vem se empobrecendo – os millennials brancos que têm visto seu poder de compra ruir apesar de seus altos índices educacionais. Gerou recordes em participação e registros de novos títulos eleitorais na cidade.
A campanha foi muito cuidadosa para não assumir uma posição de autoridade moral. Em um dos seus primeiros vídeos virais, Mamdani foi a um bairro onde a proporção de votos para Trump havia aumentado significativamente em 2024. Mamdani simplesmente perguntava aos passantes: “Por quê?”. Não havia juízo de valor, apenas “celular na mão”.
A estratégia também reverberou com importantes comunidades imigrantes da cidade, historicamente mais conservadoras, incluindo árabes, latinos, indianos e bengaleses. A campanha capturou o espírito nova-iorquino com referências ao dia-dia e a culinária da cidade, gerando emoções parecidas num amplo eleitorado, de hipsters de Williamsburg à taxistas bengaleses de Jackson Heights.
Mamdani conseguiu assim construir a imagem de um político carismático e aberto às críticas, com enfoque na governabilidade. Após sua vitória surpreendente nas primárias, ele buscou diálogo nas comunidades judias hassídicas do Brooklyn, trocou ideia com os bilionários que tanto critica e tirou o cavalinho da chuva de seus apoiadores socialistas mais inflamados, que viam na vitória o início de uma investida contra o establishment democrata. Fez política.
De certa maneira, Boulos e Mamdani propõem táticas similares, principalmente nas campanhas em redes sociais. Também é altamente provável que ambos concordariam nos seus diagnósticos sobre por que Trump e Bolsonaro tiveram tanto sucesso.
No entanto, enquanto o nova-iorquino tem quase que uma obsessão em ouvir, o paulistano prefere ditar o que é melhor para os eleitores. Claro, os cenários eleitorais em São Paulo e Nova York são radicalmente diferentes. Enquanto a classe média na cidade americana tem um histórico de progressismo e abertura para candidatos mais radicais, nos últimos 10 anos a paulistana tem confiado mais em candidatos conservadores.
Mas a diferença principal está na insistência em manter-se no pedestal da falsa “recompensa militante” que parece se preocupar mais com vitórias morais do que com vitórias políticas. Boulos até entende que é preciso vencer os eleitores que abandonaram a esquerda—a classe média inclusive—mas mesmo com o “celular na mão, pé no barro” não há tática que superará uma arrogância aparente.
Créditos da imagem: Wikimedia Commons.
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