Ensaio: O que aprender com Joaquim Inojosa, um modernista fracassado


Um aviso amigo diretamente do passado para os que buscam visões de Brasil
POR JOÃO GADO F. COSTA • 23/11/2025

Se sequer um de nossos leitores tiver clicado neste artigo já conhecendo Joaquim Inojosa (sem, claro, o ter descoberto por meu intermédio), será uma raridade. Quase que universalmente esquecido hoje, relegado a notas de rodapé em artigos acadêmicos, Joaquim Inojosa foi um dos protagonistas da enorme transformação cultural que tomou conta do Brasil na década de 1920: o modernismo… Isso se acreditarmos na visão dele sobre os fatos, que chegam até nós em mais de uma dezena de livros que ele mesmo escreveu.

Na realidade, Inojosa foi um malogrado crítico cultural que pouco entendeu as idéias que ele mesmo pregava e passou a vida reivindicando seu lugar ao sol para diminuta platéia. Mas sua empreitada sem sucesso não foi de todo inútil. Seu desaparecimento, ou melhor, sua nunca-aparição no rol de grandes pensadores brasileiros é a sua maior lição para quem hoje se propõe a pensar sobre o Brasil e seus desencantos. Inojosa nos ensina o perigo da ensimesmice para pensar o Brasil, de se fechar em idéias potentes mas mal-aplicadas na tentativa de transformar o país.

O fracasso da empreitada modernista de Inojosa contracenou com um país em crise social e política que seus oponentes souberam navegar bem mas Inojosa não. Dado o momento atual do nosso país, no qual visões progressistas remam muito só pra não afundar na enchente reacionária que toma conta do país, este texto deve ser lido como um aviso amigo diretamente do passado para os que buscam visões de Brasil – e também como um amouse-bouche para o que escreverei no futuro por aqui.


Antes de prosseguirmos com a biografia do nosso não-herói da vez, cabe aqui um aparte histórico sobre o modernismo. O entendimento mais senso-comum em relação ao modernismo no Brasil é que ele foi um movimento, ou série de movimentos artísticos e literários, que começam com a famigerada Semana de 22 em São Paulo e que se alastram pelo país em sucessivas “gerações”, indo da antropofagia até Clarice Lispector para criar o século XX cultural que reconhecemos como tão brasileiro. Mas, como é de se esperar, a história é um tanto mais torta que esta seqüência de fatos.

Virou moda na academia dos anos 90 mostrar que tinha sido moda na academia dos anos 40 atribuir à Semana de Arte Moderna um papel desproporcional na história cultural brasileira. Segundo essa nova geração de pesquisadores, a maioria deles cariocas, foi a USP da época que criou esse mito, e lá atrás todo mundo sabia que moderno mesmo era o Rio de Lima Barreto.

Não vou me alongar sobre o assunto, mas o fato é que o Brasil tinha mais do que duas cidades e que nelas a modernidade e suas conseqüências também eram sentidas e vividas. E foi no Recife dos anos 1920 que Inojosa se meteu na disputa intelectual, artística e cultural do modernismo.

Joaquim Inojosa fazia o perfil de um intelectual da República Velha saído direto de manual sociológico. Nasceu no agreste pernambucano na fronteira com a Paraíba, de onde seguiu para estudar na Faculdade de Direito do Recife. Lá, encontrou no Jornal do Commercio e num bocado de publicações menores o espaço para divulgar seus escritos. Continuando no percurso previsível, se ligou a qualquer oligarquia da vez, e depois do golpe varguista de 1930, acabaria no Rio, onde virou advogado, jornalista e bajulador de artistas e intelectuais da Zona Sul.

Perdoem, leitores, a biografia a toque de caixa de texto, mas pouco importam os detalhes insórdidos de boa parte de sua trajetória. Quando lemos suas múltiplas autobiografias, fica claro que sua juventude na década de 1920 foi a mais interessante e notória parte de sua vida.

Em 1922, bancado pelo governo de Pernambuco, Inojosa foi enviado ao Rio para representar seus pares em um congresso de estudantes durante as comemorações do centenário da Independência. Em seus relatos, Inojosa descreve esta viagem como o grande momento de inflexão de sua vida, mas pouco tem a dizer sobre o congresso ou o Rio. O que mudou a vida do jovem pernambucano naquele ano foi a passadinha que sua comitiva deu em São Paulo. Lá, Inojosa faz uma visita ao Correio Paulistano e conheceu dois de seus contribuintes mais ilustres: os escritores Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, que logo o apresentaram ao resto da patota artística que vinha provocando patrícios paulistas e que fizera estardalhaço na Semana de Arte Moderna em fevereiro daquele ano.

Foi esse encontro com os modernistas paulistas que definiu a vida de Inojosa, que o fez voltar ao Recife munido de algumas cópias da revista Klaxon e a missão – que ele mesmo descreve em termos religiosos – de pregar o credo modernista na sua parte do país.

Em sua visão autohagiográfica, Joaquim Inojosa se identifica como o vanguardista da vanguarda, trazendo para sua terra a boa-nova do modernismo paulista. Metido com jornais e publicações estudantis desde antes da viagem, ele retoma a escrita agora com o propósito proselitista.

No metiê intelectual recifense da época, surge então um grupo de jovens que se diziam futuristas ou modernistas. Encabeçados por Inojosa e seu amigo, o escritor Austro Costa, o bando soa o chamado da revolução cultural, do estilhaçamento da arte “passadista” e da adesão às novidades estéticas trazidas de São Paulo. Sem mais sonetos e versos alexandrinos gastos, agora era a hora do verso livre, do poema-piada, da galhofa irreverente.

Os adeptos do futurismo travaram então alfinetantes batalhas nas colunas sociais e culturais dos diários e hebdomadários de Pernambuco. Até fundaram seus próprios veículos, como a Mauricéa de Inojosa, para melhor combater os inimigos reacionários do progresso. Em três monumentais e meticulosos volumes d’O movimento modernista em Pernambuco – sem dúvida o magnum opus do autor – Joaquim Inojosa coletou as provas de sua participação e importância nesta frente cultural. Mas neste, assim como em outros de seus textos, fica claro pro leitor que algo não bate bem nessa história, ou melhor, que o vilão-mor dela não parece ser tratado com a devida atenção que lhe caberia numa boa história intelectual brasileira.


É aqui, leitora, que eu revelo que um título pior desse ensaio poderia ter sido “Como ser Gilberto Freyre e não Joaquim Inojosa”. Freyre – que imagino dispensar apresentações – foi contemporâneo de Inojosa no Recife dos anos 1920, mas os dois jovens estavam em margens opostas da remexida cultural que os litterati do Capibaribe preparavam naqueles anos.

Antes de consolidar-se como o lusotropicalista que conhecemos, o recém-voltado-dos-Estados-Unidos Gilberto também entrou na onda de debater cultura nos jornais pernambucanos, fincando bandeira no Diário de Pernambuco, reduto de “passadistas”, segundo Inojosa.

O grupo de Freyre, que veio a se denominar “regionalista”, defendia que a estética dos modernistas estava deslocada no Nordeste. Freyre preferia focar em uma regeneração cultural através da redescoberta e valorização do que era distintamente regional e, no caso do Recife, nordestino. Eles tachavam as idéias importadas do Rio e de São Paulo de demasiadamente destruidoras e rasas em sua crítica aos artistas da época.

Este núcleo inicial do Recife liderado por Freyre foi se expandindo, chegando a incluir escritoras como a cearense Rachel de Queiroz — com quem Freyre manteve amizade a vida toda — e inspirando romances de vulto como Menino de Engenho, do paraibano José Lins do Rego, entre outros.

Se hoje reconhecemos os nomes de apenas um lado da disputa, já no Recife da década de 1920 um leitor interessado poderia vislumbrar alguns pontos que mostravam por que Gilberto Freyre era areia demais pro automobile importado de Joaquim Inojosa.

Pra começar, Inojosa não soube entender o contexto cultural no qual estava. Ao chegar no Recife com suas ideias vindas de São Paulo, o jovem encantado esperava abrir os olhos de seus conterrâneos para a maravilha do moderno. O que encontrou, no entanto, foi uma sociedade que já entendia que o moderno estava chegando e que não estava muito entusiasmada com o que via. Quando Inojosa chegou causando em Pernambuco, suas novidades foram recebidas como provocação copiadora de moda de São Paulo, idéias deslocadas que não atendiam aos anseios da sociedade onde eram lidas. Essa importação mambembe contrasta com a prática intelectual de seu inimigo número 1 Freyre, que com seus regionalistas promovia uma inovação estética centrada na valorização da arte regional, no resgate de práticas culturais típicas e de figuras da realidade local.

Não havia nos textos de Inojosa uma visão de cultura ancorada no entendimento das mudanças por qual passava a sociedade nordestina, que há menos de 40 anos fora açucareira e escravagista. Mas lá estavam os regionalistas de Freyre para entregar justamente isso, uma visão de um Recife modernizado sem ser descaracterizado, onde não se celebrariam “deuses europeus” nas fachadas de prédios, mas as figuras emblemáticas da região. Sem desatar totalmente o nó do racismo – e talvez até atando mais ainda –, Freyre esboçava uma visão positiva da miscigenação e suas idéias permitiram a valorização de diversos elementos da cultura brasileira a partir e não apesar de suas origens latifundiárias.

O mal de Inojosa, no entanto, não foi só cometer um simples pecado das idéias fora do lugar ou de ser moderno demais entre um ninho de conservadores (orientação política, aliás, de muitos regionalistas). O curioso é que ele caiu também na armadilha de achar que bastava o diagnóstico dos paulistas para resolver a crise de identidade pela qual passava o Brasil. Mas faltou o tratamento. Inojosa trouxe as idéias modernas para o Recife, mas não o espírito criativo e inovador dos paulistas, que rendeu romances como Macunaíma. A turma do Brás, Bexiga e Barra Funda percebia que a sociedade brasileira passava por uma crise de identidade e trataram de atuar em cima disso com sua arte. Inojosa se limitou a denunciar o “passadismo” de alguns artistas e achou que a sede de mudança contagiaria a todos.

Separando ainda mais Inojosa e Freyre estava a relação de cada um com o que vinha de fora do Brasil. Como de praxe, Inojosa se destaca pela ausência nesse quesito também. Mesmo que a grande sacada de seus heróis paulistas tenha tido pesada e explícita influência das vanguardas francesas para a partir delas criar algo novo, Inojosa nunca pensou em olhar seriamente pra fora também. Chegou a citar algumas referências vindas da Europa, mas, no pouco que ele criou, ele importou de São Paulo e não de Paris.

Já o tão regionalista Freyre acabara de estudar nos Estados Unidos e de passar uma temporada na Europa e não teve medo de olhar para além do Recife. Com seu jeitinho brasileiro, popularizou uma nova concepção da sociedade brasileira. Revalorizando a colonização portuguesa e as influências africanas no Brasil, mesmo em seu anti-modernismo, Freyre conseguiu ser moderno. Um modernismo conservador e voltado para o passado, mas ainda assim moderno.

Relendo hoje tudo o que Inojosa publicou nos anos 20, é nítido o contraste dos arroubos inojosentos com a análise freyreana. Inojosa, no final das contas, disse muito pouco de interessante. Não escreveu um grande romance, seus poemas eram pouco inovadores e suas provocações não acertavam o alvo. Seu defeito maior foi ser um soldado com excesso de causa mas falta de causo.


Uma época de crise e reviravolta cultural é um momento propício para um olhar ao novo, ao externo e ao que está para além do localmente imediato. Os modernistas do século passado – fossem os vanguardistas paulistas, fossem os regionalistas freyreanos – tiveram a perspicácia de entender que o Brasil não era único lugar do mundo que passava por uma crise de identidade. Já os Inojosas da vida, que reproduziram mal o diagnóstico de outros e não foram além de uma fórmula klaxônica demovida de seu contexto cosmopolita, ficaram nas margens.

O incômodo causado pelo complexo industrial-cultural do agro-sertanejismo, as reviravoltas do caetanismo e todas as outras picuinhas culturais de hoje apontam para uma dificuldade de se compreender as mudanças pelas quais passa o Brasil. Assim como Inojosa não chegou muito longe chamando tudo de “passadismo”, é difícil ver como reclamar do neoliberalismo ou do fascismo ou seja lá o que for vá resolver nossos incômodos de hoje.

Há novos e interessantes debates sobre o que fazer sobre o neo-fascismo que correm o mundo e eles não são desconexos das dificuldades da esquerda brasileira de se recompor após o choque bolsonarista. É essencial para quem queira entender o que se passa no Brasil reconhecer que o fim do fim da história não começou só por causa de vinte centavos em São Paulo. Ao contrário de certas filósofas, muitos de nós não temos o luxo de não entrar no novo século que está nascendo e, por isso, devemos nos preparar com a mais ampla visão teórica e prática sobre o que se passa com o mundo, seja de onde vier.

Quero deixar claro que esta crítica é direcionada principalmente ao difuso e vago “campo progressista”, seja da esquerda liberal, social-democrata, radical, (web-)comunista ou coisa que o valha. Eu entendo que uma boa parte desse grupo — a qual pertenço, diga-se de passagem — tem um problema de sair da ensimesmice brasileira, tem uma dificuldade de entender o que vem e o que se passa fora do país. Já a direita brasileira não tem medo de se sintonizar com seus pares internacionais – seja Steve Bannon, Milei ou Bukele – em busca de inspiração.

Como avisei no começo, este texto está aqui para servir de um grande e divagador prolegômeno de alguns assuntos sobre os quais quero escrever aqui. A avestruzice ora orgulhosa, ora envergonhada de algumas tendências políticas e intelectuais brasileiras para com a gringa será um dos próximos temas, na tentativa de entender como podemos arejar discussões e gerar novas idéias. As respostas às várias formas de “passadismo” de hoje demandam criatividade. Caso contrário, corremos o risco de ver uma profusão de novos Inojosas.

Alguns anos após os embates sobre o modernismo no Recife, com a publicação de Casa grande & senzala (1933), Gilberto Freyre projetou-se para além do seu círculo nordestino e adquiriu notoriedade nacional. Enquanto Freyre virava celebridade, Joaquim Inojosa perdia-se no semi-anonimato em órbita da intelligentsia carioca. Forçado a se mudar ao Rio de Janeiro depois da Revolução de 1930, abriu um escritório de advocacia e mais tarde um jornal. O arauto do modernismo passou a ter seus debates culturais em palcos a portas fechadas. Freqüentava, entre outros, os encontros na sala do também advogado e bibliófilo Plínio Doyle, através de quem conheceu brevemente Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Resignado a ser coadjuvante, achou o espaço e o tempo para escrever seus relatos sobre o modernismo pernambucano e tentar dar o troco que Freyre nunca se preocupou em receber.


Crédito da imagem: Wikimedia Commons.

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João Gado F. Costa é repórter do Pindograma.

Ensaio: O que aprender com Joaquim Inojosa, um modernista fracassado

Um aviso amigo diretamente do passado para os que buscam visões de Brasil

POR JOÃO GADO F. COSTA

23/11/2025

Se sequer um de nossos leitores tiver clicado neste artigo já conhecendo Joaquim Inojosa (sem, claro, o ter descoberto por meu intermédio), será uma raridade. Quase que universalmente esquecido hoje, relegado a notas de rodapé em artigos acadêmicos, Joaquim Inojosa foi um dos protagonistas da enorme transformação cultural que tomou conta do Brasil na década de 1920: o modernismo… Isso se acreditarmos na visão dele sobre os fatos, que chegam até nós em mais de uma dezena de livros que ele mesmo escreveu.

Na realidade, Inojosa foi um malogrado crítico cultural que pouco entendeu as idéias que ele mesmo pregava e passou a vida reivindicando seu lugar ao sol para diminuta platéia. Mas sua empreitada sem sucesso não foi de todo inútil. Seu desaparecimento, ou melhor, sua nunca-aparição no rol de grandes pensadores brasileiros é a sua maior lição para quem hoje se propõe a pensar sobre o Brasil e seus desencantos. Inojosa nos ensina o perigo da ensimesmice para pensar o Brasil, de se fechar em idéias potentes mas mal-aplicadas na tentativa de transformar o país.

O fracasso da empreitada modernista de Inojosa contracenou com um país em crise social e política que seus oponentes souberam navegar bem mas Inojosa não. Dado o momento atual do nosso país, no qual visões progressistas remam muito só pra não afundar na enchente reacionária que toma conta do país, este texto deve ser lido como um aviso amigo diretamente do passado para os que buscam visões de Brasil – e também como um amouse-bouche para o que escreverei no futuro por aqui.


Antes de prosseguirmos com a biografia do nosso não-herói da vez, cabe aqui um aparte histórico sobre o modernismo. O entendimento mais senso-comum em relação ao modernismo no Brasil é que ele foi um movimento, ou série de movimentos artísticos e literários, que começam com a famigerada Semana de 22 em São Paulo e que se alastram pelo país em sucessivas “gerações”, indo da antropofagia até Clarice Lispector para criar o século XX cultural que reconhecemos como tão brasileiro. Mas, como é de se esperar, a história é um tanto mais torta que esta seqüência de fatos.

Virou moda na academia dos anos 90 mostrar que tinha sido moda na academia dos anos 40 atribuir à Semana de Arte Moderna um papel desproporcional na história cultural brasileira. Segundo essa nova geração de pesquisadores, a maioria deles cariocas, foi a USP da época que criou esse mito, e lá atrás todo mundo sabia que moderno mesmo era o Rio de Lima Barreto.

Não vou me alongar sobre o assunto, mas o fato é que o Brasil tinha mais do que duas cidades e que nelas a modernidade e suas conseqüências também eram sentidas e vividas. E foi no Recife dos anos 1920 que Inojosa se meteu na disputa intelectual, artística e cultural do modernismo.

Joaquim Inojosa fazia o perfil de um intelectual da República Velha saído direto de manual sociológico. Nasceu no agreste pernambucano na fronteira com a Paraíba, de onde seguiu para estudar na Faculdade de Direito do Recife. Lá, encontrou no Jornal do Commercio e num bocado de publicações menores o espaço para divulgar seus escritos. Continuando no percurso previsível, se ligou a qualquer oligarquia da vez, e depois do golpe varguista de 1930, acabaria no Rio, onde virou advogado, jornalista e bajulador de artistas e intelectuais da Zona Sul.

Perdoem, leitores, a biografia a toque de caixa de texto, mas pouco importam os detalhes insórdidos de boa parte de sua trajetória. Quando lemos suas múltiplas autobiografias, fica claro que sua juventude na década de 1920 foi a mais interessante e notória parte de sua vida.

Em 1922, bancado pelo governo de Pernambuco, Inojosa foi enviado ao Rio para representar seus pares em um congresso de estudantes durante as comemorações do centenário da Independência. Em seus relatos, Inojosa descreve esta viagem como o grande momento de inflexão de sua vida, mas pouco tem a dizer sobre o congresso ou o Rio. O que mudou a vida do jovem pernambucano naquele ano foi a passadinha que sua comitiva deu em São Paulo. Lá, Inojosa faz uma visita ao Correio Paulistano e conheceu dois de seus contribuintes mais ilustres: os escritores Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, que logo o apresentaram ao resto da patota artística que vinha provocando patrícios paulistas e que fizera estardalhaço na Semana de Arte Moderna em fevereiro daquele ano.

Foi esse encontro com os modernistas paulistas que definiu a vida de Inojosa, que o fez voltar ao Recife munido de algumas cópias da revista Klaxon e a missão – que ele mesmo descreve em termos religiosos – de pregar o credo modernista na sua parte do país.

Em sua visão autohagiográfica, Joaquim Inojosa se identifica como o vanguardista da vanguarda, trazendo para sua terra a boa-nova do modernismo paulista. Metido com jornais e publicações estudantis desde antes da viagem, ele retoma a escrita agora com o propósito proselitista.

No metiê intelectual recifense da época, surge então um grupo de jovens que se diziam futuristas ou modernistas. Encabeçados por Inojosa e seu amigo, o escritor Austro Costa, o bando soa o chamado da revolução cultural, do estilhaçamento da arte “passadista” e da adesão às novidades estéticas trazidas de São Paulo. Sem mais sonetos e versos alexandrinos gastos, agora era a hora do verso livre, do poema-piada, da galhofa irreverente.

Os adeptos do futurismo travaram então alfinetantes batalhas nas colunas sociais e culturais dos diários e hebdomadários de Pernambuco. Até fundaram seus próprios veículos, como a Mauricéa de Inojosa, para melhor combater os inimigos reacionários do progresso. Em três monumentais e meticulosos volumes d’O movimento modernista em Pernambuco – sem dúvida o magnum opus do autor – Joaquim Inojosa coletou as provas de sua participação e importância nesta frente cultural. Mas neste, assim como em outros de seus textos, fica claro pro leitor que algo não bate bem nessa história, ou melhor, que o vilão-mor dela não parece ser tratado com a devida atenção que lhe caberia numa boa história intelectual brasileira.


É aqui, leitora, que eu revelo que um título pior desse ensaio poderia ter sido “Como ser Gilberto Freyre e não Joaquim Inojosa”. Freyre – que imagino dispensar apresentações – foi contemporâneo de Inojosa no Recife dos anos 1920, mas os dois jovens estavam em margens opostas da remexida cultural que os litterati do Capibaribe preparavam naqueles anos.

Antes de consolidar-se como o lusotropicalista que conhecemos, o recém-voltado-dos-Estados-Unidos Gilberto também entrou na onda de debater cultura nos jornais pernambucanos, fincando bandeira no Diário de Pernambuco, reduto de “passadistas”, segundo Inojosa.

O grupo de Freyre, que veio a se denominar “regionalista”, defendia que a estética dos modernistas estava deslocada no Nordeste. Freyre preferia focar em uma regeneração cultural através da redescoberta e valorização do que era distintamente regional e, no caso do Recife, nordestino. Eles tachavam as idéias importadas do Rio e de São Paulo de demasiadamente destruidoras e rasas em sua crítica aos artistas da época.

Este núcleo inicial do Recife liderado por Freyre foi se expandindo, chegando a incluir escritoras como a cearense Rachel de Queiroz — com quem Freyre manteve amizade a vida toda — e inspirando romances de vulto como Menino de Engenho, do paraibano José Lins do Rego, entre outros.

Se hoje reconhecemos os nomes de apenas um lado da disputa, já no Recife da década de 1920 um leitor interessado poderia vislumbrar alguns pontos que mostravam por que Gilberto Freyre era areia demais pro automobile importado de Joaquim Inojosa.

Pra começar, Inojosa não soube entender o contexto cultural no qual estava. Ao chegar no Recife com suas ideias vindas de São Paulo, o jovem encantado esperava abrir os olhos de seus conterrâneos para a maravilha do moderno. O que encontrou, no entanto, foi uma sociedade que já entendia que o moderno estava chegando e que não estava muito entusiasmada com o que via. Quando Inojosa chegou causando em Pernambuco, suas novidades foram recebidas como provocação copiadora de moda de São Paulo, idéias deslocadas que não atendiam aos anseios da sociedade onde eram lidas. Essa importação mambembe contrasta com a prática intelectual de seu inimigo número 1 Freyre, que com seus regionalistas promovia uma inovação estética centrada na valorização da arte regional, no resgate de práticas culturais típicas e de figuras da realidade local.

Não havia nos textos de Inojosa uma visão de cultura ancorada no entendimento das mudanças por qual passava a sociedade nordestina, que há menos de 40 anos fora açucareira e escravagista. Mas lá estavam os regionalistas de Freyre para entregar justamente isso, uma visão de um Recife modernizado sem ser descaracterizado, onde não se celebrariam “deuses europeus” nas fachadas de prédios, mas as figuras emblemáticas da região. Sem desatar totalmente o nó do racismo – e talvez até atando mais ainda –, Freyre esboçava uma visão positiva da miscigenação e suas idéias permitiram a valorização de diversos elementos da cultura brasileira a partir e não apesar de suas origens latifundiárias.

O mal de Inojosa, no entanto, não foi só cometer um simples pecado das idéias fora do lugar ou de ser moderno demais entre um ninho de conservadores (orientação política, aliás, de muitos regionalistas). O curioso é que ele caiu também na armadilha de achar que bastava o diagnóstico dos paulistas para resolver a crise de identidade pela qual passava o Brasil. Mas faltou o tratamento. Inojosa trouxe as idéias modernas para o Recife, mas não o espírito criativo e inovador dos paulistas, que rendeu romances como Macunaíma. A turma do Brás, Bexiga e Barra Funda percebia que a sociedade brasileira passava por uma crise de identidade e trataram de atuar em cima disso com sua arte. Inojosa se limitou a denunciar o “passadismo” de alguns artistas e achou que a sede de mudança contagiaria a todos.

Separando ainda mais Inojosa e Freyre estava a relação de cada um com o que vinha de fora do Brasil. Como de praxe, Inojosa se destaca pela ausência nesse quesito também. Mesmo que a grande sacada de seus heróis paulistas tenha tido pesada e explícita influência das vanguardas francesas para a partir delas criar algo novo, Inojosa nunca pensou em olhar seriamente pra fora também. Chegou a citar algumas referências vindas da Europa, mas, no pouco que ele criou, ele importou de São Paulo e não de Paris.

Já o tão regionalista Freyre acabara de estudar nos Estados Unidos e de passar uma temporada na Europa e não teve medo de olhar para além do Recife. Com seu jeitinho brasileiro, popularizou uma nova concepção da sociedade brasileira. Revalorizando a colonização portuguesa e as influências africanas no Brasil, mesmo em seu anti-modernismo, Freyre conseguiu ser moderno. Um modernismo conservador e voltado para o passado, mas ainda assim moderno.

Relendo hoje tudo o que Inojosa publicou nos anos 20, é nítido o contraste dos arroubos inojosentos com a análise freyreana. Inojosa, no final das contas, disse muito pouco de interessante. Não escreveu um grande romance, seus poemas eram pouco inovadores e suas provocações não acertavam o alvo. Seu defeito maior foi ser um soldado com excesso de causa mas falta de causo.


Uma época de crise e reviravolta cultural é um momento propício para um olhar ao novo, ao externo e ao que está para além do localmente imediato. Os modernistas do século passado – fossem os vanguardistas paulistas, fossem os regionalistas freyreanos – tiveram a perspicácia de entender que o Brasil não era único lugar do mundo que passava por uma crise de identidade. Já os Inojosas da vida, que reproduziram mal o diagnóstico de outros e não foram além de uma fórmula klaxônica demovida de seu contexto cosmopolita, ficaram nas margens.

O incômodo causado pelo complexo industrial-cultural do agro-sertanejismo, as reviravoltas do caetanismo e todas as outras picuinhas culturais de hoje apontam para uma dificuldade de se compreender as mudanças pelas quais passa o Brasil. Assim como Inojosa não chegou muito longe chamando tudo de “passadismo”, é difícil ver como reclamar do neoliberalismo ou do fascismo ou seja lá o que for vá resolver nossos incômodos de hoje.

Há novos e interessantes debates sobre o que fazer sobre o neo-fascismo que correm o mundo e eles não são desconexos das dificuldades da esquerda brasileira de se recompor após o choque bolsonarista. É essencial para quem queira entender o que se passa no Brasil reconhecer que o fim do fim da história não começou só por causa de vinte centavos em São Paulo. Ao contrário de certas filósofas, muitos de nós não temos o luxo de não entrar no novo século que está nascendo e, por isso, devemos nos preparar com a mais ampla visão teórica e prática sobre o que se passa com o mundo, seja de onde vier.

Quero deixar claro que esta crítica é direcionada principalmente ao difuso e vago “campo progressista”, seja da esquerda liberal, social-democrata, radical, (web-)comunista ou coisa que o valha. Eu entendo que uma boa parte desse grupo — a qual pertenço, diga-se de passagem — tem um problema de sair da ensimesmice brasileira, tem uma dificuldade de entender o que vem e o que se passa fora do país. Já a direita brasileira não tem medo de se sintonizar com seus pares internacionais – seja Steve Bannon, Milei ou Bukele – em busca de inspiração.

Como avisei no começo, este texto está aqui para servir de um grande e divagador prolegômeno de alguns assuntos sobre os quais quero escrever aqui. A avestruzice ora orgulhosa, ora envergonhada de algumas tendências políticas e intelectuais brasileiras para com a gringa será um dos próximos temas, na tentativa de entender como podemos arejar discussões e gerar novas idéias. As respostas às várias formas de “passadismo” de hoje demandam criatividade. Caso contrário, corremos o risco de ver uma profusão de novos Inojosas.

Alguns anos após os embates sobre o modernismo no Recife, com a publicação de Casa grande & senzala (1933), Gilberto Freyre projetou-se para além do seu círculo nordestino e adquiriu notoriedade nacional. Enquanto Freyre virava celebridade, Joaquim Inojosa perdia-se no semi-anonimato em órbita da intelligentsia carioca. Forçado a se mudar ao Rio de Janeiro depois da Revolução de 1930, abriu um escritório de advocacia e mais tarde um jornal. O arauto do modernismo passou a ter seus debates culturais em palcos a portas fechadas. Freqüentava, entre outros, os encontros na sala do também advogado e bibliófilo Plínio Doyle, através de quem conheceu brevemente Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Resignado a ser coadjuvante, achou o espaço e o tempo para escrever seus relatos sobre o modernismo pernambucano e tentar dar o troco que Freyre nunca se preocupou em receber.


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