Os efeitos do motim da PM no Ceará


Paralisação em fevereiro de 2020 afetou desproporcionalmente as populações periféricas
POR PEDRO SIEMSEN • 19/04/2021

No dia 18 de fevereiro de 2020, os policiais militares do Ceará começaram um motim e deixaram de patrulhar as ruas do estado. Marcada por momentos de tensão, a paralisação tinha como principal objetivo aumentar o salário considerado insatisfatório por parte da corporação. A greve ilegal se encerrou apenas quando o governador Camilo Santana (PT) fechou um acordo com as lideranças dos amotinados, levando os policiais a voltarem a seus postos de trabalho na manhã do dia 2 de março.

Apesar de ter durado apenas 13 dias, o motim resultou em um aumento significativo nos índices de criminalidade da capital, e afetou desproporcionalmente os periféricos. A greve ilegal, seguida pela pandemia, mudou o perfil do crime na cidade, com um aumento de roubos, crimes contra a vida e dos furtos em certas comunidades.

As ocorrências de roubo cresceram muito na capital durante o motim. No entanto, essa mudança nos números foi distribuída de maneira desigual pelos bairros da cidade. Enquanto o aumento de roubos entre janeiro e fevereiro foi de apenas 4,2% na área de segurança 1, que inclui bairros de renda alta como o Meireles e Jardim Iracema, houve um aumento de 123% na área de segurança 7, assinalada no mapa.

Como os mapas mostram, esse quadro não voltou aos níveis de janeiro após o fim da paralisação. Segundo César Barreira, sociólogo e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, “a ausência de policiamento leva diretamente a um aumento das taxas de roubos e assaltos”. E a pandemia contribuiu com essa ausência: “Nós tivemos uma sequência muito negativa nessa situação, pois tivemos o motim e logo em seguida a pandemia… Ou os policiais foram deslocados para outras ações ou os policiais ficaram infectados com o vírus”, disse o professor. A diminuição considerável do policiamento ostensivo — seja devido à paralisação, seja devido à pandemia — levou a números de crimes bem altos em fevereiro e março.

Já outros crimes não apresentaram tanto crescimento. Os furtos, por exemplo, apresentaram taxas pequenas de mudança. Em fevereiro, a greve ilegal dos policiais levou as pessoas a ficar em casa e comércios a fecharem. E dado que furtos geralmente ocorrem quando há alguém na rua para ser furtado, houve uma queda leve desse tipo de crime. A pandemia prolongou essa situação e as taxas de furto continuaram baixas até junho de 2020, quando a primeira onda do vírus começou a diminuir.

Segundo Barreira, contudo, a pandemia trouxe uma mudança na dinâmica dos furtos que os dados não capturam muito bem. O professor afirma que houve uma mudança no ethos de facções dominantes do crime local. Antes da pandemia, os grupos criminosos que dominavam certas regiões não permitiam roubos e furtos. Porém, isso mudou: “nessa época da pandemia, em função até da não circulação das pessoas, começou a ser permitido”. Passou a haver maior leniência das facções com crimes menores para “compensar” a falta de rendimento advindo dos crimes realizados anteriormente nas regiões mais centrais da cidade.

Enquanto isso, os Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) — categoria que inclui o homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e latrocínios — aumentaram muito no mês da paralisação. No entanto, essa alta se sustentou durante os próximos meses, o que enfraquece a hipótese de que o motim tenha sido responsável por este aumento.

Segundo Barreira, “é importante ressaltar que não houve nenhuma alteração com relação a esse tipo de crime”. Diferente de roubos e furtos, que são fortemente afetados por mudanças no policiamento e esvaziamento das ruas, Barreira afirma que os homicídios seguem uma lógica própria e que “a disputa de território entre facções é o grande explicador dos aumentos de taxas de homicídio”.

Após o racha entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) em 2016, que teve repercussões nacionais no mundo do crime, Fortaleza começou a ter mais conflitos. Atualmente, o estado do Ceará está sendo disputado por dois grupos: a aliança entre a Família do Norte (FDN) e o CV, que tentam controlar o litoral do estado; e o grupo rival composto pelo PCC e pelos Guardiões Do Estado (GDE), a facção cearense mais poderosa. Barreira afirma que “logo que se inicia a pandemia, há um aumento [das disputas entre facções]. Então, tranquilamente, os [aumentos das] taxas de homicídios vão decorrer desse fato”.

Esses aumentos afetaram particularmente as regiões de Vila Velha e Barra do Ceará, no noroeste da cidade, entre abril e junho de 2020. Ambas estão na área de segurança 8, que é adjacente a uma área controlada pelo CV. Já em maio, a região de Granja Lisboa, na AIS 2, mostrou um aumento considerável no número de CVLIs. Esse fenômeno pode ser explicado pelo fato que a AIS 2 tem presença tanto do PCC, GDE e do CV.

A politização das paralisações e da segurança pública

Diversas paralisações policiais que ocorreram nos últimos anos, principalmente desde 2013, contribuíram para desestabilizar governos estaduais e se tornaram eventos políticos importantes para a consolidação do bolsonarismo. Barreira, que observa a presença de policiais na política desde 1999, afirma que “as pessoas não se apresentavam na política como policiais, elas negavam as suas patentes”. Atualmente, a situação se inverteu.

O caso do motim no Ceará é um bom exemplo de como a politização das forças policiais está afetando a vida das pessoas e as dinâmicas do crime, além de ser uma força eleitoral significativa. O estado já havia passado por uma série de paralisações relevantes nos anos 2010 que marcaram o cenário político do estado.

O maior proponente do fenômeno é Capitão Wagner (PROS), atualmente deputado federal pelo estado e segundo colocado nas eleições para prefeito da capital cearense em 2020. Sua carreira política foi alavancada pelo motim policial em 2011. Como explica Barreira, “Todo o capital político dele decorre daí, então ele se torna uma pessoa forte e ímpar nas forças de segurança.”

E ele continua verdadeiro às causas iniciais: em 2020 tentou passar uma lei no Congresso que garantiria a anistia a todos os líderes da greve ilegal no Ceará. A paralisação também foi utilizada por aliados do presidente da República no Congresso para constranger governadores e adicionar à retórica bolsonarista.

Recentemente, discutiu-se a possibilidade de um encorajar um motim de PMs no estado da Bahia, após o policial militar Wesley Goés violentamente atacar seus colegas em Salvador no dia 28 de março. Deputados da base do governo como Bia Kicis (PSL-DF) encorajaram abertamente um levante policial no estado. O motim não ocorreu, mas foi outro episódio de consequência da politização das polícias e da lógica bolsonarista de se aproveitar do fenômeno político sem realmente se importar com as péssimas condições de trabalho sofridas por policiais.


Dados utilizados na matéria: Estatísticas de Segurança Pública (SSPDS-CE).

Contribuiu com Dados: Daniel Ferreira.

Créditos da imagem: Acervo da ALCE; Mauri Melo/Prefeitura de Fortaleza; Brandon Newendorp/Flickr.

Para reproduzir os números e gráficos dessa matéria, o código pode ser acessado aqui.

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Pedro Siemsen é repórter do Pindograma.

Os efeitos do motim da PM no Ceará

Paralisação em fevereiro de 2020 afetou desproporcionalmente as populações periféricas

POR PEDRO SIEMSEN

19/04/2021

No dia 18 de fevereiro de 2020, os policiais militares do Ceará começaram um motim e deixaram de patrulhar as ruas do estado. Marcada por momentos de tensão, a paralisação tinha como principal objetivo aumentar o salário considerado insatisfatório por parte da corporação. A greve ilegal se encerrou apenas quando o governador Camilo Santana (PT) fechou um acordo com as lideranças dos amotinados, levando os policiais a voltarem a seus postos de trabalho na manhã do dia 2 de março.

Apesar de ter durado apenas 13 dias, o motim resultou em um aumento significativo nos índices de criminalidade da capital, e afetou desproporcionalmente os periféricos. A greve ilegal, seguida pela pandemia, mudou o perfil do crime na cidade, com um aumento de roubos, crimes contra a vida e dos furtos em certas comunidades.

As ocorrências de roubo cresceram muito na capital durante o motim. No entanto, essa mudança nos números foi distribuída de maneira desigual pelos bairros da cidade. Enquanto o aumento de roubos entre janeiro e fevereiro foi de apenas 4,2% na área de segurança 1, que inclui bairros de renda alta como o Meireles e Jardim Iracema, houve um aumento de 123% na área de segurança 7, assinalada no mapa.

Como os mapas mostram, esse quadro não voltou aos níveis de janeiro após o fim da paralisação. Segundo César Barreira, sociólogo e coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, “a ausência de policiamento leva diretamente a um aumento das taxas de roubos e assaltos”. E a pandemia contribuiu com essa ausência: “Nós tivemos uma sequência muito negativa nessa situação, pois tivemos o motim e logo em seguida a pandemia… Ou os policiais foram deslocados para outras ações ou os policiais ficaram infectados com o vírus”, disse o professor. A diminuição considerável do policiamento ostensivo — seja devido à paralisação, seja devido à pandemia — levou a números de crimes bem altos em fevereiro e março.

Já outros crimes não apresentaram tanto crescimento. Os furtos, por exemplo, apresentaram taxas pequenas de mudança. Em fevereiro, a greve ilegal dos policiais levou as pessoas a ficar em casa e comércios a fecharem. E dado que furtos geralmente ocorrem quando há alguém na rua para ser furtado, houve uma queda leve desse tipo de crime. A pandemia prolongou essa situação e as taxas de furto continuaram baixas até junho de 2020, quando a primeira onda do vírus começou a diminuir.

Segundo Barreira, contudo, a pandemia trouxe uma mudança na dinâmica dos furtos que os dados não capturam muito bem. O professor afirma que houve uma mudança no ethos de facções dominantes do crime local. Antes da pandemia, os grupos criminosos que dominavam certas regiões não permitiam roubos e furtos. Porém, isso mudou: “nessa época da pandemia, em função até da não circulação das pessoas, começou a ser permitido”. Passou a haver maior leniência das facções com crimes menores para “compensar” a falta de rendimento advindo dos crimes realizados anteriormente nas regiões mais centrais da cidade.

Enquanto isso, os Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) — categoria que inclui o homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e latrocínios — aumentaram muito no mês da paralisação. No entanto, essa alta se sustentou durante os próximos meses, o que enfraquece a hipótese de que o motim tenha sido responsável por este aumento.

Segundo Barreira, “é importante ressaltar que não houve nenhuma alteração com relação a esse tipo de crime”. Diferente de roubos e furtos, que são fortemente afetados por mudanças no policiamento e esvaziamento das ruas, Barreira afirma que os homicídios seguem uma lógica própria e que “a disputa de território entre facções é o grande explicador dos aumentos de taxas de homicídio”.

Após o racha entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) em 2016, que teve repercussões nacionais no mundo do crime, Fortaleza começou a ter mais conflitos. Atualmente, o estado do Ceará está sendo disputado por dois grupos: a aliança entre a Família do Norte (FDN) e o CV, que tentam controlar o litoral do estado; e o grupo rival composto pelo PCC e pelos Guardiões Do Estado (GDE), a facção cearense mais poderosa. Barreira afirma que “logo que se inicia a pandemia, há um aumento [das disputas entre facções]. Então, tranquilamente, os [aumentos das] taxas de homicídios vão decorrer desse fato”.

Esses aumentos afetaram particularmente as regiões de Vila Velha e Barra do Ceará, no noroeste da cidade, entre abril e junho de 2020. Ambas estão na área de segurança 8, que é adjacente a uma área controlada pelo CV. Já em maio, a região de Granja Lisboa, na AIS 2, mostrou um aumento considerável no número de CVLIs. Esse fenômeno pode ser explicado pelo fato que a AIS 2 tem presença tanto do PCC, GDE e do CV.

A politização das paralisações e da segurança pública

Diversas paralisações policiais que ocorreram nos últimos anos, principalmente desde 2013, contribuíram para desestabilizar governos estaduais e se tornaram eventos políticos importantes para a consolidação do bolsonarismo. Barreira, que observa a presença de policiais na política desde 1999, afirma que “as pessoas não se apresentavam na política como policiais, elas negavam as suas patentes”. Atualmente, a situação se inverteu.

O caso do motim no Ceará é um bom exemplo de como a politização das forças policiais está afetando a vida das pessoas e as dinâmicas do crime, além de ser uma força eleitoral significativa. O estado já havia passado por uma série de paralisações relevantes nos anos 2010 que marcaram o cenário político do estado.

O maior proponente do fenômeno é Capitão Wagner (PROS), atualmente deputado federal pelo estado e segundo colocado nas eleições para prefeito da capital cearense em 2020. Sua carreira política foi alavancada pelo motim policial em 2011. Como explica Barreira, “Todo o capital político dele decorre daí, então ele se torna uma pessoa forte e ímpar nas forças de segurança.”

E ele continua verdadeiro às causas iniciais: em 2020 tentou passar uma lei no Congresso que garantiria a anistia a todos os líderes da greve ilegal no Ceará. A paralisação também foi utilizada por aliados do presidente da República no Congresso para constranger governadores e adicionar à retórica bolsonarista.

Recentemente, discutiu-se a possibilidade de um encorajar um motim de PMs no estado da Bahia, após o policial militar Wesley Goés violentamente atacar seus colegas em Salvador no dia 28 de março. Deputados da base do governo como Bia Kicis (PSL-DF) encorajaram abertamente um levante policial no estado. O motim não ocorreu, mas foi outro episódio de consequência da politização das polícias e da lógica bolsonarista de se aproveitar do fenômeno político sem realmente se importar com as péssimas condições de trabalho sofridas por policiais.


Dados utilizados na matéria: Estatísticas de Segurança Pública (SSPDS-CE).

Contribuiu com Dados: Daniel Ferreira.

Créditos da imagem: Acervo da ALCE; Mauri Melo/Prefeitura de Fortaleza; Brandon Newendorp/Flickr.

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