Ensaio: Neoliberalismo no Brasil, um mal-entendido?


De 1980 para cá, o papel do Estado não diminuiu; o que mudou é que nossas aspirações enquanto sociedade ficaram muito menores
POR DANIEL FERREIRA • 21/09/2025

Quem termina de ler Raízes do Brasil sai com a impressão de que Sérgio Buarque de Holanda achava todo mundo ao redor dele um bando de otários. “Palavras bonitas ou argumentos sedutores” levavam “quase todos os nossos homens de grande talento” a “sustentar, simultaneamente, as convicções mais díspares”. “Pedagogos da prosperidade” se apegavam, “na melhor hipótese”, a “verdades parciais”. Intelectuais sofriam do “vício do bacharelismo” e suas “construções de inteligência” representavam mero “repouso para a imaginação”.

Não termina aí o compêndio de invectivas contra a intelligentsia tupiniquim. “Raciocínios preguiçosos” se deixavam impressionar pelo “prestígio de teorias que trazem o endosso de nomes estrangeiros e difíceis”. Caíam na “sedução das palavras ou fórmulas de virtude quase sobrenatural e que tudo resolvem de um gesto, como as varas mágicas”.

Críticas pesadas que provavelmente não incomodam tanto o leitor contemporâneo. Com a distância de um século, é fácil concordar com Sérgio Buarque que o alvo mais imediato das suas críticas, a filosofia positivista, era de fato uma vara mágica. Mais difícil é reconhecer as varas mágicas no Brasil de 2025. Algumas encantam tão bem que é difícil nos desvencilharmos delas.

A ideia de “neoliberalismo” no Brasil, arriscaria eu, é uma dessas varas mágicas. Seja para a centro-direita, que vê o neoliberalismo como solução para as mazelas econômicas do país; seja para a esquerda, que o denuncia como a raiz das crises pelas quais vimos passando desde a década de 80, o neoliberalismo parece realmente “tudo resolver de um gesto”. Mas, infelizmente, é uma resolução ilusória e contraprodutiva, que desvia nossa atenção para problemas imaginários e mascara o que realmente importa.


Entre os intérpretes do Brasil “meio intelectuais, meio de esquerda”, é um quase-consenso que, entre 1980 e 1995, a economia e o Estado no Brasil passaram por uma transição da era desenvolvimentista à era neoliberal. Agentes do capital internacional teriam se aproveitado da catastrófica crise dos anos 80 para impor soluções como a abertura comercial, austeridade fiscal e juros altos. Tudo isso teria levado aos seguintes impactos de médio prazo:

  • Diminuição da participação direta do Estado na economia, especialmente depois das privatizações da década de 1990;
  • Precarização das relações de trabalho, na esteira da desindustrialização;
  • Retração dos programas sociais brasileiros, dado o aperto nas contas públicas.

O problema é que essa narrativa se adequa muito mal à realidade brasileira:

(1) A carga tributária bruta do Brasil aumentou de 24,4% do PIB em 1980 para 32,3% em 2024. Em outras palavras, o controle pelo Estado dos recursos econômicos, longe de diminuir, cresceu.

Mas e as privatizações? Dificilmente a produção anual das estatais privatizadas dá 8% do PIB. Ou seja, em termos de controle direto de recursos econômicos, o Estado parece ter compensado a perda das estatais com o aumento da receita tributária.

O Estado também nunca perdeu o poder de dirigir a economia indiretamente através da participação que lhe restou nas empresas de economia mista e nos bancos públicos. Vide o primeiro governo Dilma, que usou o caixa da Petrobras para represar os preços de energia. O subsídio chegou a 1,2% do PIB. Desde a Lei das Estatais, aprovada em 2016, o Estado vem exercendo mais autocontrole sobre essa prerrogativa. Mas até hoje, nenhum governo abdicou desse poder.

(2) O saldo da dita precarização do emprego é mais ambíguo do que geralmente se imagina. No Brasil como um todo, a fração de celetistas cresceu bastante nas últimas décadas. Em 1979, apenas 37% da população ocupada no setor privado tinham carteira assinada. Hoje, a taxa é de 45% (e chegaria a 49% se incluíssemos os servidores públicos na conta).

É nas grandes metrópoles que esse número diminuiu. Nas regiões metropolitanas do Rio e de São Paulo, a fração de celetistas entre a população ocupada caiu de 63% em 1979 para 54% em 2015 (ou 58%, se considerados os servidores públicos). Os dados são da PNAD.

A concentração da intelectualidade brasileira no eixo Rio-São Paulo talvez tenha facilitado a percepção de que o regime de proteção do trabalho inaugurado na Era Vargas está em decadência. Uma ilusão, quando se considera o movimento inverso no interior do país. O mercado de trabalho formal no Brasil parece estar passando mais por uma pulverização do que por uma retração.

(3) Longe de diminuírem, as políticas sociais brasileiras têm se expandido significativamente desde 1980. O gasto previdenciário aumentou. Foi criado o Bolsa Família. E mesmo na saúde e na educação, a presença do Estado também cresceu.

Entre as décadas de 30 e 80, a maior parte dos investimentos federais em saúde era transferido para clínicas e hospitais privados, através de convênios com a Previdência. A criação do SUS colocou muito mais recursos sob a administração direta do Estado.

Até fins dos anos 80, também era corriqueiro que o governo brasileiro desse bolsas de estudo para jovens gastarem em escolas particulares. Alguns estados até deixavam de construir escolas em lugares onde já havia escolas privadas, para evitar concorrência! Hoje, a quantidade de subsídios públicos ao ensino privado é muito menor.


Esses dados sugerem que a chave do neoliberalismo talvez não seja a melhor forma de interpretar as mudanças radicais na economia política do Brasil desde a década de 80. Mas se a mudança não está nem na participação do Estado na economia, nem na precarização do mercado de trabalho, nem no corte de conquistas sociais, o que aconteceu de fato?

Uma das transformações é o impacto da desindustrialização sobre as forças políticas brasileiras. Em meados do século XX, a indústria e o comércio eram os principais grupos de interesse patronais no Brasil. Hoje, lobbies ligados ao agro e ao setor financeiro são bem mais poderosos. E isso traz consequências importantes para políticas públicas. Para citar um exemplo só, a pressão é maior para que o governo mantenha uma política monetária ortodoxa. Também fica mais difícil avançar uma agenda em torno da preservação da Amazônia.

Outra transformação é que caímos na armadilha da renda média. Nosso sistema de seguridade social ficou muito mais robusto e generoso, mas nossa capacidade de investimento — seja do setor público ou do setor privado — diminuiu.

Mas a mudança mais relevante é que o nosso horizonte de aspirações enquanto sociedade diminuiu muito desde os anos 80. No auge do desenvolvimentismo, a maioria das pessoas parecia acreditar que, em uma ou duas gerações, o Brasil se tornaria um país desenvolvido. Hoje, nossos governantes parecem ter aceitado o papel de gestores do subdesenvolvimento: as metas se limitam a manter o equilíbrio fiscal, trazer melhoras marginais nos serviços públicos, e ver se dá pra aprovar alguma reforma que aumente o PIB em 0,1 ou 0,2 pontos percentuais.

A nível individual, nossos horizontes também ficaram mais restritos. A mobilidade social no Brasil vem caindo desde os anos 80. Mais anos de estudo deixaram de ser garantia de ascensão social. Não é mais óbvio para a grande maioria dos pais que seus filhos terão uma vida melhor do que a deles.

Quem nasceu nos anos 40 e 50 podia sonhar com uma trajetória como a de Lula: que migrou de Pernambuco para São Paulo para escapar da fome e que, vinte anos depois, com o seu salário de metalúrgico, conseguiu comprar uma casa própria e um Volkswagen TL. Apenas uma pequena minoria dos brasileiros teve tamanha ascensão, mas era uma minoria ampla o suficiente para alimentar aspirações minimamente realistas de que era uma trajetória alcançável para qualquer um. Hoje, não parece haver caminho comparável.

A vara mágica do neoliberalismo quer nos fazer acreditar que essa falta de horizontes pode ser reduzida à suposta retração do Estado desde 1980. Mas como vimos, essa retração é apenas suposta. Se quisermos enfrentar a “era de expectativas decrescentes” em que nos encontramos, está na hora de propor novos diagnósticos dos males do Brasil contemporâneo. A eles serão dedicados meus próximos artigos.


Crédito da imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil.

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Daniel Ferreira é editor do Pindograma.

Ensaio: Neoliberalismo no Brasil, um mal-entendido?

De 1980 para cá, o papel do Estado não diminuiu; o que mudou é que nossas aspirações enquanto sociedade ficaram muito menores

POR DANIEL FERREIRA

21/09/2025

Quem termina de ler Raízes do Brasil sai com a impressão de que Sérgio Buarque de Holanda achava todo mundo ao redor dele um bando de otários. “Palavras bonitas ou argumentos sedutores” levavam “quase todos os nossos homens de grande talento” a “sustentar, simultaneamente, as convicções mais díspares”. “Pedagogos da prosperidade” se apegavam, “na melhor hipótese”, a “verdades parciais”. Intelectuais sofriam do “vício do bacharelismo” e suas “construções de inteligência” representavam mero “repouso para a imaginação”.

Não termina aí o compêndio de invectivas contra a intelligentsia tupiniquim. “Raciocínios preguiçosos” se deixavam impressionar pelo “prestígio de teorias que trazem o endosso de nomes estrangeiros e difíceis”. Caíam na “sedução das palavras ou fórmulas de virtude quase sobrenatural e que tudo resolvem de um gesto, como as varas mágicas”.

Críticas pesadas que provavelmente não incomodam tanto o leitor contemporâneo. Com a distância de um século, é fácil concordar com Sérgio Buarque que o alvo mais imediato das suas críticas, a filosofia positivista, era de fato uma vara mágica. Mais difícil é reconhecer as varas mágicas no Brasil de 2025. Algumas encantam tão bem que é difícil nos desvencilharmos delas.

A ideia de “neoliberalismo” no Brasil, arriscaria eu, é uma dessas varas mágicas. Seja para a centro-direita, que vê o neoliberalismo como solução para as mazelas econômicas do país; seja para a esquerda, que o denuncia como a raiz das crises pelas quais vimos passando desde a década de 80, o neoliberalismo parece realmente “tudo resolver de um gesto”. Mas, infelizmente, é uma resolução ilusória e contraprodutiva, que desvia nossa atenção para problemas imaginários e mascara o que realmente importa.


Entre os intérpretes do Brasil “meio intelectuais, meio de esquerda”, é um quase-consenso que, entre 1980 e 1995, a economia e o Estado no Brasil passaram por uma transição da era desenvolvimentista à era neoliberal. Agentes do capital internacional teriam se aproveitado da catastrófica crise dos anos 80 para impor soluções como a abertura comercial, austeridade fiscal e juros altos. Tudo isso teria levado aos seguintes impactos de médio prazo:

  • Diminuição da participação direta do Estado na economia, especialmente depois das privatizações da década de 1990;
  • Precarização das relações de trabalho, na esteira da desindustrialização;
  • Retração dos programas sociais brasileiros, dado o aperto nas contas públicas.

O problema é que essa narrativa se adequa muito mal à realidade brasileira:

(1) A carga tributária bruta do Brasil aumentou de 24,4% do PIB em 1980 para 32,3% em 2024. Em outras palavras, o controle pelo Estado dos recursos econômicos, longe de diminuir, cresceu.

Mas e as privatizações? Dificilmente a produção anual das estatais privatizadas dá 8% do PIB. Ou seja, em termos de controle direto de recursos econômicos, o Estado parece ter compensado a perda das estatais com o aumento da receita tributária.

O Estado também nunca perdeu o poder de dirigir a economia indiretamente através da participação que lhe restou nas empresas de economia mista e nos bancos públicos. Vide o primeiro governo Dilma, que usou o caixa da Petrobras para represar os preços de energia. O subsídio chegou a 1,2% do PIB. Desde a Lei das Estatais, aprovada em 2016, o Estado vem exercendo mais autocontrole sobre essa prerrogativa. Mas até hoje, nenhum governo abdicou desse poder.

(2) O saldo da dita precarização do emprego é mais ambíguo do que geralmente se imagina. No Brasil como um todo, a fração de celetistas cresceu bastante nas últimas décadas. Em 1979, apenas 37% da população ocupada no setor privado tinham carteira assinada. Hoje, a taxa é de 45% (e chegaria a 49% se incluíssemos os servidores públicos na conta).

É nas grandes metrópoles que esse número diminuiu. Nas regiões metropolitanas do Rio e de São Paulo, a fração de celetistas entre a população ocupada caiu de 63% em 1979 para 54% em 2015 (ou 58%, se considerados os servidores públicos). Os dados são da PNAD.

A concentração da intelectualidade brasileira no eixo Rio-São Paulo talvez tenha facilitado a percepção de que o regime de proteção do trabalho inaugurado na Era Vargas está em decadência. Uma ilusão, quando se considera o movimento inverso no interior do país. O mercado de trabalho formal no Brasil parece estar passando mais por uma pulverização do que por uma retração.

(3) Longe de diminuírem, as políticas sociais brasileiras têm se expandido significativamente desde 1980. O gasto previdenciário aumentou. Foi criado o Bolsa Família. E mesmo na saúde e na educação, a presença do Estado também cresceu.

Entre as décadas de 30 e 80, a maior parte dos investimentos federais em saúde era transferido para clínicas e hospitais privados, através de convênios com a Previdência. A criação do SUS colocou muito mais recursos sob a administração direta do Estado.

Até fins dos anos 80, também era corriqueiro que o governo brasileiro desse bolsas de estudo para jovens gastarem em escolas particulares. Alguns estados até deixavam de construir escolas em lugares onde já havia escolas privadas, para evitar concorrência! Hoje, a quantidade de subsídios públicos ao ensino privado é muito menor.


Esses dados sugerem que a chave do neoliberalismo talvez não seja a melhor forma de interpretar as mudanças radicais na economia política do Brasil desde a década de 80. Mas se a mudança não está nem na participação do Estado na economia, nem na precarização do mercado de trabalho, nem no corte de conquistas sociais, o que aconteceu de fato?

Uma das transformações é o impacto da desindustrialização sobre as forças políticas brasileiras. Em meados do século XX, a indústria e o comércio eram os principais grupos de interesse patronais no Brasil. Hoje, lobbies ligados ao agro e ao setor financeiro são bem mais poderosos. E isso traz consequências importantes para políticas públicas. Para citar um exemplo só, a pressão é maior para que o governo mantenha uma política monetária ortodoxa. Também fica mais difícil avançar uma agenda em torno da preservação da Amazônia.

Outra transformação é que caímos na armadilha da renda média. Nosso sistema de seguridade social ficou muito mais robusto e generoso, mas nossa capacidade de investimento — seja do setor público ou do setor privado — diminuiu.

Mas a mudança mais relevante é que o nosso horizonte de aspirações enquanto sociedade diminuiu muito desde os anos 80. No auge do desenvolvimentismo, a maioria das pessoas parecia acreditar que, em uma ou duas gerações, o Brasil se tornaria um país desenvolvido. Hoje, nossos governantes parecem ter aceitado o papel de gestores do subdesenvolvimento: as metas se limitam a manter o equilíbrio fiscal, trazer melhoras marginais nos serviços públicos, e ver se dá pra aprovar alguma reforma que aumente o PIB em 0,1 ou 0,2 pontos percentuais.

A nível individual, nossos horizontes também ficaram mais restritos. A mobilidade social no Brasil vem caindo desde os anos 80. Mais anos de estudo deixaram de ser garantia de ascensão social. Não é mais óbvio para a grande maioria dos pais que seus filhos terão uma vida melhor do que a deles.

Quem nasceu nos anos 40 e 50 podia sonhar com uma trajetória como a de Lula: que migrou de Pernambuco para São Paulo para escapar da fome e que, vinte anos depois, com o seu salário de metalúrgico, conseguiu comprar uma casa própria e um Volkswagen TL. Apenas uma pequena minoria dos brasileiros teve tamanha ascensão, mas era uma minoria ampla o suficiente para alimentar aspirações minimamente realistas de que era uma trajetória alcançável para qualquer um. Hoje, não parece haver caminho comparável.

A vara mágica do neoliberalismo quer nos fazer acreditar que essa falta de horizontes pode ser reduzida à suposta retração do Estado desde 1980. Mas como vimos, essa retração é apenas suposta. Se quisermos enfrentar a “era de expectativas decrescentes” em que nos encontramos, está na hora de propor novos diagnósticos dos males do Brasil contemporâneo. A eles serão dedicados meus próximos artigos.


Crédito da imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil.

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Daniel Ferreira

é editor do Pindograma.

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