O Bomba Patch é adorado pelos brasileiros. A versão pirata do videogame Pro Evolution Soccer — o PES — conquistou o público oferecendo algo que os títulos oficiais não oferecem: jogar com os próprios times. Ver o Corinthians enfrentar o Palmeiras, o Flamengo contra o Vasco — e não apenas Barcelona e Real Madrid. Quem cresceu amando o esporte e dividindo o console com os amigos lembra bem desses campeonatos caseiros, em que a rivalidade deixava de ser europeia e virava pessoal.
Tudo começou há quase vinte anos, quando o cientista e engenheiro de computação Allan Jefferson, então um adolescente, jogava um campeonato de videogame em uma lan house e decidiu editar o Winning Eleven 10. Trocou os elencos, atualizou uniformes, igualou os jogadores do Brasileirão aos ídolos Europeus nas “stats” do jogo e lançou a versão modificada com a ajuda de amigos. O sucesso foi instantâneo. Sua mãe proporcionou as bombas de chocolate na lan house que serviriam de prêmio para o primeiro campeonato e acabou batizando o jogo.
Duas décadas depois, o futebol brasileiro continua sendo o único campeonato relevante do mundo ausente dos videogames oficiais. O Bomba Patch, por outro lado, se transformou num fenômeno cultural. Atualizado por fãs com os elencos da temporada, narrações, trilhas sonoras e até frases de efeito próprias, o jogo se tornou parte da cultura nacional.
Mas por que os grandes games internacionais não usam jogadores e clubes brasileiros?
A resposta está na lei brasileira. Ela determina que o uso da imagem de um atleta deve ser objeto de um contrato civil específico, separado do contrato de trabalho.
A intenção era proteger o jogador, garantir remuneração justa e impedir que clubes explorassem sua figura pública. Mas, como diz o ditado popular: na prática, a teoria é outra. Para qualquer empresa que queira licenciar uma liga inteira, é preciso negociar individualmente com cada atleta, empresário e clube. O resultado é um emaranhado de contratos que tornam o licenciamento de times e jogadores virtualmente impossível.
A EA Sports, dona do FIFA (hoje EA Sports FC), a Konami, criadora do PES (eFootball), e a Sports Interactive, do Football Manager, todas tentaram por anos incluir o Brasileirão e seus atletas de forma oficial. Desistiram. O custo jurídico, a burocracia e o risco de ações judiciais tornaram o projeto inviável. Por isso, o Brasil é, até hoje, a única grande liga de futebol do planeta ausente dos videogames licenciados.
O Bomba Patch, portanto, só existe porque o mercado de direitos de imagem dos jogadores não consegue funcionar dentro da estrutura legal brasileira.
Para entender a singularidade dessa situação, é preciso olhar para fora. No mundo todo, os direitos de imagem dos atletas são administrados por meio de acordos coletivos intermediados pela FIFPro, a Federação Internacional dos Jogadores Profissionais. A FIFPro representa cerca de 65 mil atletas e atua como uma câmara de compensação global. Quando empresas como a EA ou a Konami compram o direito de usar nomes e rostos dos jogadores, fazem isso em bloco: pagam um valor único à FIFPro, que redistribui os royalties entre as associações nacionais e, destas, aos atletas.
O modelo tem três vantagens evidentes. Primeiro, reduz os custos de transação. As empresas de videogame não precisam negociar com centenas de jogadores. Segundo, aumenta a previsibilidade jurídica, porque a autorização coletiva, amparada por contratos-padrão, evita litígios. Terceiro, beneficia o próprio atleta, cuja imagem ganha escala global e se torna mais valiosa, abrindo espaço para patrocínios e publicidade. Jogadores que preferem não participar podem optar por sair do acordo, mas são minoria: quanto mais presente o atleta está no imaginário mundial do futebol, mais seu valor de mercado cresce.
O Brasil, porém, vive uma situação institucional inversa. De acordo com um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, o país aprova mais de 700 novas normas jurídicas a cada dia útil. No papel, nossa Constituição é uma das cartas mais generosas do mundo, repleta de ideias que deveriam nos dar orgulho. Mas, na prática, a teoria é outra.
O economista peruano Hernando de Soto dedicou sua carreira a estudar esse problema — que está longe de se limitar aos jogadores de futebol. Em O Mistério do Capital, ele argumenta que a principal barreira ao desenvolvimento em países como os da América Latina não é a falta de talento, nem de ativos, mas a incapacidade de transformar esses ativos em capital formal. Os pobres possuem casas, negócios e terras, mas sem o reconhecimento jurídico, esses bens não podem ser usados como garantia, crédito ou investimento. Esses são os “capitais mortos”. Estão parados, enquanto poderiam estar gerando riqueza para seus detentores.
É claro que o subdesenvolvimento brasileiro não é apenas um problema de burocracia. Outras perspectivas — concentração de renda, captura do Estado, patrimonialismo, extrativismo, rentismo, dependência econômica — são indispensáveis para compreender o país. Ainda assim, o labirinto jurídico em que o Brasil se habituou a viver é parte da engrenagem do subdesenvolvimento.
Segundo o International Property Rights Index, ranking que mede a força dos direitos de propriedade e o ambiente legal que sustenta as trocas econômicas, o Brasil ocupa a 80ª posição entre 125 nações, atrás de países como Essuatíni, Cazaquistão, e Malásia. O índice confirma a tese de De Soto: quanto mais difícil é transformar direitos em ativos, mais a economia se fecha na informalidade. Não é coincidência que os países no topo da lista tenham economias muito mais desenvolvidas.
O Bomba Patch é, nesse sentido, o espelho de uma estrutura econômica emperrada. Ele simboliza a capacidade criativa dos brasileiros de contornar um sistema jurídico que, em tese, garante direitos — e que, por outro lado, os impede de exercê-los.
Créditos da imagem: Crazy Ass Moments in LatAm Politics/Twitter
[Gostou do nosso conteúdo? Siga-nos no Twitter, no Facebook e no Instagram.]