Ensaio: É hora de consumar o término


Um rompimento explícito do governo com o regime venezuelano evitaria uma crise futura perigosa
POR PEDRO SIEMSEN • 10/10/2025

No final do ano passado, o presidente Lula deu tímidos indícios de rompimento com o regime liderado por Nicolás Maduro na Venezuela. Pela primeira vez em sua trajetória política, Lula se opôs abertamente a Maduro, ao questionar os resultados das eleições roubadas de setembro de 2024 e em seguida vetar a entrada da Venezuela nos BRICS em outubro.

No entanto, a oposição lulista a Maduro parou por aí, e se limitou a atitudes simbólicas. Lula sinalizou oposição, mas falta um trabalho diplomático mais concreto contra o regime venezuelano.

A teimosia de Lula em não consumar o término com Maduro torna a política externa brasileira extremamente vulnerável caso os Estados Unidos promovam uma escalada no Mar do Caribe. Se a política externa brasileira permanecer como está e o governo dos Estados Unidos direcionar ações bélicas Venezuela adentro—seja contra cartéis ou contra o próprio regime venezuelano—o Brasil terá duas opções, e em ambas, “vai todo mundo perder”, como diria certa ex-presidente.

A primeira opção, mais provável dada a política externa do governo Lula, seria expressar oposição a uma intervenção americana por meio de ações na ONU. No entanto, tais platitudes não estabilizariam a Venezuela nem levariam o Brasil à mesa de negociações com as grandes potências para resolver o imbróglio. Uma resposta sem dentes significaria renunciar ambições de liderança regional e se resignar ao “multilateralismo dormente” descrito por Celso Amorim. Tal resposta ineficaz revelaria que a verdadeira posição do Brasil como liderança na América Latina é a de uma jaguatirica que pensa que é onça.

A segunda opção seria pior ainda. Para se opor uma intervenção americana, o Brasil teria que abandonar o (relativo) não-alinhamento histórico, aproximar-se militarmente da China e tomar uma posição radicalmente anti-americana. Nos tornaríamos parte do clube que inclui Irã, Rússia e Venezuela. Distanciar-se do “Ocidente” – um termo impreciso e contestável, diga-se de passagem – iria contra todo o legado da história e diplomacia brasileiras, para não falar da oposição interna que certamente surgiria.

Que opções restam, portanto, ao Brasil?


Qualquer posicionamento do Brasil frente à Venezuela tem de levar em conta que o envolvimento norte-americano na América Latina não deve diminuir nos próximos anos — pelo menos não até 2028. Desde março, fica cada vez mais evidente que o governo Trump tentará ditar os destinos do continente mais do que seus antecessores recentes.

Hoje, os republicanos têm dois enfoques: imigração ilegal e combate aos cartéis. E diferente do combate ao terrorismo islâmico, que dominou a política externa dos Estados Unidos nas últimas duas décadas, essas duas questões estão diretamente conectadas à América Latina.

Para uma ala influente dos republicanos, os fluxos migratórios dos últimos anos — sejam legais ou ilegais — representam uma “invasão” estrangeira do território americano. Assim, fechar a fronteira representa retomar o controle da soberania americana. Como colocou o vice-presidente J.D. Vance, “devemos rejeitar esquerdistas e os oligarcas que querem construir o futuro americano com a importação de trabalhadores”.

Já em relação aos cartéis, há rumores de que a nova Estratégia de Segurança Nacional substituirá um foco no combate à China e Rússia pela “proteção” dos EUA e do hemisfério ocidental. A mudança de enfoque levaria o Pentágono e o aparato de defesa americano a direcionar ainda mais recursos a missões na América Latina. Essa movimentação já começou com a definição de gangues salvadorenhas e venezuelanas como terroristas, que possibilita mais agressividade nas investigações e ferramentas jurídicas, pavimentou a escalada contra Maduro.

Como se não bastasse, o governo Trump sinaliza que também quer ditar os destinos políticos da América Latina para além de assuntos ligados à migração e às drogas. O caso mais emblemático foi a extensão de uma linha de swap de US$ 20 bilhões ao governo de Javier Milei, para estancar o sangramento de reservas do Banco Central argentino antes das eleições legislativas no final de outubro. Em outras palavras: o governo Trump entrou em ação para resolver uma crise que poderia ter derrubado Milei dada a insustentabilidade da banda cambial do peso. A justificativa dada pelo Secretário do Tesouro Scott Bessent foi clara e notável: “a Argentina é um farol que pode inspirar países como a Bolívia e o Equador” além de ser um “aliado sistemicamente relevante dos EUA”.

Para a Casa Branca e o Secretário de Estado Marco Rubio, Maduro não representa o povo venezuelano e é, na verdade, o “cabeça do Cartel de los Soles”, para eles um grupo terrorista. Até agora, a retórica já justificou o envio de uma flotilha de 8 naus, 4,500 tropas e 10 jatos F-35 à costa venezuelana, além do bombardeio de três supostos barcos narcotraficantes em águas internacionais. A possibilidade de escalada é real e o Brasil tem que estar preparado.


Consumar o término com o regime de Nicolás Maduro não seria um processo complicado para o governo brasileiro. Segundo reportagem de Consuelo Dieguez, o governo Lula já reconhece que Maduro não cumpre a palavra e que a Venezuela é uma ditadura. Além disso, a decisão de “cortar laços” obteve apoio majoritário dentro do PT.

Passado mais de um ano da eleição, é hora de dar o próximo passo. Para além da correta decisão política de vetar a entrada da Venezuela nos BRICS, o Brasil já tem condições de dar nome aos bois — Maduro é um ditador — e de trabalhar diplomaticamente para a sua saída do poder.

O estado de Roraima acabou de ser conectado à rede elétrica nacional e não depende mais de energia venezuelana. Além de importante passo para resiliência amazônica, isso encerra qualquer dependência estratégica do Brasil ante a Venezuela.

Além disso, após repetidas ameaças militares venezuelanas à Guiana, o Brasil começou a estacionar mais tropas na região Norte. Em outubro de 2025, as Forças Armadas concluíram o maior exercício militar do ano em Boa Vista, na Operação Atlas.

A “química” de Lula com Trump abriu uma oportunidade excelente para o Brasil. Incluir a Amazônia e a Venezuela na discussão sobre o tarifaço seria bem recebido pelos Estados Unidos, e poderia colocar o Brasil na mesa de negociações sobre o grau de intervenção americana sobre Caracas. Também seria uma boa agenda internamente para o Brasil: atacar a crise na Venezuela ajuda no combate ao garimpo ilegal, tráfico de pessoas e crimes contra os yanomami, tópicos caros ao governo Lula.

Essas conversas com os EUA permitiriam ao Brasil tomar a iniciativa para negociar, junto com as grandes potências, um futuro pós-Maduro. Lula seria mais capaz de engendrar um diálogo por uma solução democrática do que o alardoso e imprevisível governo Trump. Não há horizonte positivo para Maduro e é do interesse do Brasil evitar que uma desenfreada intervenção americana transforme a Venezuela num Haiti, como colocou um diplomata venezuelano ao New York Times (ou pior, num Iraque latino).

Mas para isso, Lula não pode ser percebido como um aliado de Maduro. Precisa consumar o término.


Créditos da imagem: Presidência da República/Ricardo Stuckert.

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Pedro Siemsen é repórter do Pindograma.

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Um rompimento explícito do governo com o regime venezuelano evitaria uma crise futura perigosa

POR PEDRO SIEMSEN

10/10/2025

No final do ano passado, o presidente Lula deu tímidos indícios de rompimento com o regime liderado por Nicolás Maduro na Venezuela. Pela primeira vez em sua trajetória política, Lula se opôs abertamente a Maduro, ao questionar os resultados das eleições roubadas de setembro de 2024 e em seguida vetar a entrada da Venezuela nos BRICS em outubro.

No entanto, a oposição lulista a Maduro parou por aí, e se limitou a atitudes simbólicas. Lula sinalizou oposição, mas falta um trabalho diplomático mais concreto contra o regime venezuelano.

A teimosia de Lula em não consumar o término com Maduro torna a política externa brasileira extremamente vulnerável caso os Estados Unidos promovam uma escalada no Mar do Caribe. Se a política externa brasileira permanecer como está e o governo dos Estados Unidos direcionar ações bélicas Venezuela adentro—seja contra cartéis ou contra o próprio regime venezuelano—o Brasil terá duas opções, e em ambas, “vai todo mundo perder”, como diria certa ex-presidente.

A primeira opção, mais provável dada a política externa do governo Lula, seria expressar oposição a uma intervenção americana por meio de ações na ONU. No entanto, tais platitudes não estabilizariam a Venezuela nem levariam o Brasil à mesa de negociações com as grandes potências para resolver o imbróglio. Uma resposta sem dentes significaria renunciar ambições de liderança regional e se resignar ao “multilateralismo dormente” descrito por Celso Amorim. Tal resposta ineficaz revelaria que a verdadeira posição do Brasil como liderança na América Latina é a de uma jaguatirica que pensa que é onça.

A segunda opção seria pior ainda. Para se opor uma intervenção americana, o Brasil teria que abandonar o (relativo) não-alinhamento histórico, aproximar-se militarmente da China e tomar uma posição radicalmente anti-americana. Nos tornaríamos parte do clube que inclui Irã, Rússia e Venezuela. Distanciar-se do “Ocidente” – um termo impreciso e contestável, diga-se de passagem – iria contra todo o legado da história e diplomacia brasileiras, para não falar da oposição interna que certamente surgiria.

Que opções restam, portanto, ao Brasil?


Qualquer posicionamento do Brasil frente à Venezuela tem de levar em conta que o envolvimento norte-americano na América Latina não deve diminuir nos próximos anos — pelo menos não até 2028. Desde março, fica cada vez mais evidente que o governo Trump tentará ditar os destinos do continente mais do que seus antecessores recentes.

Hoje, os republicanos têm dois enfoques: imigração ilegal e combate aos cartéis. E diferente do combate ao terrorismo islâmico, que dominou a política externa dos Estados Unidos nas últimas duas décadas, essas duas questões estão diretamente conectadas à América Latina.

Para uma ala influente dos republicanos, os fluxos migratórios dos últimos anos — sejam legais ou ilegais — representam uma “invasão” estrangeira do território americano. Assim, fechar a fronteira representa retomar o controle da soberania americana. Como colocou o vice-presidente J.D. Vance, “devemos rejeitar esquerdistas e os oligarcas que querem construir o futuro americano com a importação de trabalhadores”.

Já em relação aos cartéis, há rumores de que a nova Estratégia de Segurança Nacional substituirá um foco no combate à China e Rússia pela “proteção” dos EUA e do hemisfério ocidental. A mudança de enfoque levaria o Pentágono e o aparato de defesa americano a direcionar ainda mais recursos a missões na América Latina. Essa movimentação já começou com a definição de gangues salvadorenhas e venezuelanas como terroristas, que possibilita mais agressividade nas investigações e ferramentas jurídicas, pavimentou a escalada contra Maduro.

Como se não bastasse, o governo Trump sinaliza que também quer ditar os destinos políticos da América Latina para além de assuntos ligados à migração e às drogas. O caso mais emblemático foi a extensão de uma linha de swap de US$ 20 bilhões ao governo de Javier Milei, para estancar o sangramento de reservas do Banco Central argentino antes das eleições legislativas no final de outubro. Em outras palavras: o governo Trump entrou em ação para resolver uma crise que poderia ter derrubado Milei dada a insustentabilidade da banda cambial do peso. A justificativa dada pelo Secretário do Tesouro Scott Bessent foi clara e notável: “a Argentina é um farol que pode inspirar países como a Bolívia e o Equador” além de ser um “aliado sistemicamente relevante dos EUA”.

Para a Casa Branca e o Secretário de Estado Marco Rubio, Maduro não representa o povo venezuelano e é, na verdade, o “cabeça do Cartel de los Soles”, para eles um grupo terrorista. Até agora, a retórica já justificou o envio de uma flotilha de 8 naus, 4,500 tropas e 10 jatos F-35 à costa venezuelana, além do bombardeio de três supostos barcos narcotraficantes em águas internacionais. A possibilidade de escalada é real e o Brasil tem que estar preparado.


Consumar o término com o regime de Nicolás Maduro não seria um processo complicado para o governo brasileiro. Segundo reportagem de Consuelo Dieguez, o governo Lula já reconhece que Maduro não cumpre a palavra e que a Venezuela é uma ditadura. Além disso, a decisão de “cortar laços” obteve apoio majoritário dentro do PT.

Passado mais de um ano da eleição, é hora de dar o próximo passo. Para além da correta decisão política de vetar a entrada da Venezuela nos BRICS, o Brasil já tem condições de dar nome aos bois — Maduro é um ditador — e de trabalhar diplomaticamente para a sua saída do poder.

O estado de Roraima acabou de ser conectado à rede elétrica nacional e não depende mais de energia venezuelana. Além de importante passo para resiliência amazônica, isso encerra qualquer dependência estratégica do Brasil ante a Venezuela.

Além disso, após repetidas ameaças militares venezuelanas à Guiana, o Brasil começou a estacionar mais tropas na região Norte. Em outubro de 2025, as Forças Armadas concluíram o maior exercício militar do ano em Boa Vista, na Operação Atlas.

A “química” de Lula com Trump abriu uma oportunidade excelente para o Brasil. Incluir a Amazônia e a Venezuela na discussão sobre o tarifaço seria bem recebido pelos Estados Unidos, e poderia colocar o Brasil na mesa de negociações sobre o grau de intervenção americana sobre Caracas. Também seria uma boa agenda internamente para o Brasil: atacar a crise na Venezuela ajuda no combate ao garimpo ilegal, tráfico de pessoas e crimes contra os yanomami, tópicos caros ao governo Lula.

Essas conversas com os EUA permitiriam ao Brasil tomar a iniciativa para negociar, junto com as grandes potências, um futuro pós-Maduro. Lula seria mais capaz de engendrar um diálogo por uma solução democrática do que o alardoso e imprevisível governo Trump. Não há horizonte positivo para Maduro e é do interesse do Brasil evitar que uma desenfreada intervenção americana transforme a Venezuela num Haiti, como colocou um diplomata venezuelano ao New York Times (ou pior, num Iraque latino).

Mas para isso, Lula não pode ser percebido como um aliado de Maduro. Precisa consumar o término.


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