Um dos memes mais fascinantes dos últimos tempos: se 100 homens desarmados enfrentassem um gorila das montanhas, quem venceria a briga? Por meses, tuiteiros no Brasil e no exterior discutiram a composição ideal do pelotão — colocar um lutador de UFC ou punir o Neymar? O meme caiu em desuso, mas o seu poder de comparação segue de pé no mundo da política internacional.
No tarifaço de 2025, o Brasil é um dos membros frágeis do pelotão de homens na briga contra o gorila laranja norte-americano. Desde julho, fomos infelizmente arrastados para a linha de frente e estamos no alcance das pancadas do primata raivoso. A perspectiva dos próximos meses é ruim. O presidente Donald Trump insiste na anistia de Jair Bolsonaro e o STF não está disposto a aliviar para o ex-presidente. Membros do governo já têm certeza que novas sanções virão após a iminente condenação em 12 de setembro. Já a oposição no legislativo clama por uma anistia que supostamente apaziguaria a coisa toda (mas sem garantias da Casa Branca).
No entanto, interpretar a origem da disputa em torno do julgamento de Bolsonaro ou da aproximação de Lula com os BRICS gera uma análise equivocada. Não podemos ser jecas: o tarifaço é um fenômeno global e o Brasil é uma parte pequeníssima do cálculo de Trump na imposição de tarifas.
Aceitar nossa irrelevância no caótico processo de realinhamento global promovido pela Casa Branca é fundamental se quisermos nos antecipar às novas pancadas do gorila até as eleições de outubro de 2026.
Desde a primeira presidência de Trump, o foco da política externa norte-americana tem sido a competição geopolítica com a China. Todo o resto é barulho. A obsessão do primeiro mandato de Trump foi fechar o acordo do Phase One com os chineses em 2020, às vésperas da pandemia, após uma guerra tarifária que durou dois anos. Em 2025, a prioridade norte-americana é novamente forçar os chineses a comprarem mais produtos americanos e frear os seus avanços em tecnologias de defesa e inteligência artificial (IA).
Não à toa, em 2024, um dos pilares da campanha presidencial de Trump foi o “fim das guerras intermináveis” e a “paz por meio da força”, justamente para limpar o terreno e voltar a focar na China. Para enfrentar esse desafio geopolítico, Trump desceu pro play inspirado por dois presidentes dos quais ele se declara um fã convicto: William McKinley e Richard Nixon.
McKinley foi presidente nos anos 1890 e é o tariff man original da história norte-americana. Segundo Trump, ele tornou os EUA rico “por meio de tarifas e talento”. Ele foi também o responsável pela invasão de Cuba e das Filipinas.
Nixon — que trocava cartas com Trump nos anos 80 — dispensa apresentações. O modus operandi nixoniano assemelha-se ao trumpista, com muitos escândalos, personalismo, duras broncas aos aliados europeus e reuniões um-a-um com rivais geopolíticos.

Donald Trump se compara a Richard Nixon em post no Truth Social
Tanto Nixon quanto Trump se movimentaram para quebrar o alinhamento russo-chinês. Porém, o movimento atual é uma reversão dos anos 1970. Enquanto Nixon se aproximou da China para isolar a Rússia, Trump recebe Putin de tapete vermelho para queimar o Xi.
Simultaneamente, a Casa Branca vem solapando os europeus sem dó. O discurso do Vice-Presidente J.D. Vance na conferência de segurança de Munique em fevereiro foi extremamente nixoniano ao demandar mais responsabilidade e participação dos aliados Europeus. Também foi extremamente efetivo em acabar com a inércia dos alemães, que agora prometem gastar 5% do PIB em defesa.
Nos últimos 8 meses, o tarifaço foi o instrumento principal da política externa americana. O objetivo trumpista com tudo isso ainda não é 100% claro, mas é evidentemente focado na China. Pode ser uma maneira de forçar países a escolherem entre fazer negócios com os EUA e o país asiático. Pode ser uma maneira de cortar o déficit comercial americano e reviver a capacidade manufatureira para competir com os chineses. Pode ser uma tentativa de aumentar receitas para combater o crescente problema fiscal americano e aumentar gastos militares. Pode ser tudo junto.
No fim das contas, o Trump declaradamente curte uma tarifa e sempre prometeu implementá-las. Elas continuarão uma realidade inegável da política externa americana, independentemente de quem leve as midterms em 2026 ou a presidência em 2028.
Dito isso, o temperamento mercurial de Trump introduziu também um fator esculhambeiro ao processo de imposição de tarifas. Trump é uma grande estrela de reality, com comportamento digno de participantes notórios do BBB ou até mesmo do rancho do Carlinhos Maia. Ele gosta de ser paparicado e muda subitamente de opinião. Tanto líderes empresariais quanto chefes de estado engajam-se em rituais de beija-mão nos palácios da capital americana, com presentes cada vez mais esdrúxulos e promessas de investimentos impossíveis. Eles sabem que o bom-humor de Trump, por mais banais que sejam as suas causas, pode significar uma tarifa maior ou menor.
O exemplo mais ilustrativo é o tarifaço contra a Índia, que pode ser considerado ainda mais dramático do que o caso brasileiro. O premiê indiano Narendra Modi havia cultivado uma relação amistosa com Trump desde 2017. Nos corredores do Pentágono e da Casa Branca, a Índia era vista desde então como um aliado essencial para frear a máquina chinesa, tanto militarmente como também como alternativa de fronteira industrial, um novo polo para produzir iPhones e outros produtos de alto valor agregado. No começo do ano, Modi visitou Washington e J.D. Vance retribuiu indo à Nova Delhi. O comentariado global dava o fechamento de um acordo comercial favorável como quase certo antes de 2026.
Nada feito. Aparentemente, Modi se recusou a paparicar Trump da mesma maneira que os rivais paquistaneses. Enquanto os generais do Paquistão indicaram Trump para o Nobel da Paz, Modi negou que Trump tivesse engendrado uma paz na Caxemira. O premiê indiano acabou arrastado para a frente do pelotão com tarifas de 50%. Venceu a esculhambação. Embora ministros de Modi ressaltem que as negociações com os EUA continuam, o premiê tem se aproximado de Putin e até mesmo de Xi, apesar das tensas disputas fronteiriças entre Índia e China.
O tarifaço sobre o Brasil surpreendeu menos que o da Índia. Tensões entre o Brasil e os EUA teriam aflorado inevitavelmente, dado um governo ideologicamente oposto aos republicanos, bem como a entrada de empresas chinesas e seu ecossistema tecnológico na economia brasileira. Mas esse conflito foi turbinado pelo je ne sais quoi bolsonarista para atingir o Brasil. Claro, declarações pró-BRICS e anti-dólar feitas pelo Lula na véspera não ajudaram a situação brasileira, mas o fator principal foi a eficácia surpreendente de Eduardo Bolsonaro em ativar o fator esculhambeiro trumpista e direcioná-lo contra o Brasil.
Estamos na frente do pelotão, e agora? Não há uma saída clara à frente. Trump ainda procura utilizar o poder americano de maneira nixoniana para atingir seus objetivos de criar o que acredita ser um ambiente geopolítico mais favorável aos EUA. O Brasil receberá mais pancadas nas próximas semanas, com a condenação iminente de Bolsonaro pai. O caminho para o pleito de outubro do ano que vem também gerará outros momentos de vulnerabilidade para o Brasil. Mesmo que o Bolsonarismo saia do radar, é provável que a Casa Branca também cause atrito por meio de uma postura mais agressiva contra cartéis ou até mesmo o governo venezuelano.
Porém, a escala do intervencionismo americano contra o Brasil dependerá muito mais das negociações de Trump com a China do que das peripécias do STF.
A despeito disso, a situação não é irreversível. O Brasil ainda mantém certa autonomia, centrada na sua longa tradição diplomática de não-alinhamento. O governo Lula recusou a entrada na Nova Rota da Seda ano passado (praticamente um bloco chinês não-oficial), que teria solidificado a parceria política entre Brasil e China. Além disso, o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia cria possibilidades para dissolver lentamente a dependência em exportações à China.
As tarifas implementadas na primeira semana de agosto provavelmente cairão (ou serão limitadas) por decisão da Suprema Corte americana nos próximos meses, como sinalizado pela recente decisão de um tribunal de segunda instância. Porém, os americanos ainda terão outros mecanismos de pressão comercial—as investigações que mencionam o etanol, Pix, entre outros. Podem ensaiar também sanções contra bancos brasileiros, como já feito contra instituições financeiras mexicanas acusadas de envolvimento com o tráfico de fentanil. Os efeitos seriam extremamente destrutivos.
Mas novamente, o mais importante será a possibilidade de um grande encontro entre Trump e Xi até o final do mandato republicano. Feito algum tipo de acordo ou resolução, o Brasil terá que lidar com uma nova conjuntura, deitado eternamente em berço esplêndido. Talvez sejamos deixados para morrer na praia se Trump conseguir que os chineses comprem toda a soja em Chicago em vez de Paranaguá. Ou talvez sejamos favorecidos como uma nação intermediária entre os dois blocos econômicos.
Outra possibilidade é amedrontadora. Se não houver conversa entre os dois países, a China pode invadir Taiwan, com chance alta de retaliação americana e um novo conflito no Pacífico. Ficaremos numa situação de boca de sinuca, por ser um fornecedor agrícola chave para os chineses localizado no hemisfério americano. Será uma situação muito mais delicada do que nos anos 1940, por exemplo, quando o país tinha relações comerciais relativamente equilibradas com a Alemanha nazista e os EUA e Getúlio Vargas iniciou um jogo de toma-lá-dá-cá para sair por cima.
No pelotão que encontra o hercúleo gorila americano, o Brasil faz bem em promover uma retórica de multilateralismo. Porém não podemos esquecer que somos apenas mais um marmanjo na malfadada coluna. Qualquer análise de conjuntura é irrelevante se cultivar ilusões de excepcionalismo brasileiro. Aproximar-se de países à sombra do gorila, como o Canadá e o México, faz sentido, e uma ratificação do acordo com a UE reforçaria a diversificação dos nossos parceiros comerciais. Nosso problema é que no ombro do gorila há um sagüizinho enxerido, a família Bolsonaro, direcionando o gigante frontalmente contra o Brasil. Se fossemos realmente malandros, não facilitaríamos para o gorila.
Créditos das imagens: Donald Trump/Truth Social.
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