Polícia mata negros desproporcionalmente em todas as subdivisões do Rio de Janeiro


Independentemente da composição racial do bairro, quase todas as mortes causadas por policiais atingem negros
POR JOÃO GADO F. COSTA • 01/06/2021

No estado do Rio de Janeiro, negros correspondem a 80% dos mortos pela polícia. O número é 28,3 pontos percentuais maior que a proporção deste grupo racial na população do estado (51,7%). A taxa de negros mortos pela polícia também é 6,5 pontos percentuais maior do que a proporção morta em homicídios no geral (73,5%, segundo dados do Ministério da Saúde).

Uma hipótese que poderia explicar o número de negros mortos pela polícia ser tão alto é a seguinte: policiais atuariam mais em regiões menos brancas, aumentando a chance de um morador preto ou pardo ser morto. No entanto, um levantamento feito pelo Pindograma mostra que a proporção de pretos e pardos mortos por policiais é maior do que a proporção de moradores negros em todos os Batalhões de Polícia Militar do estado.

Utilizando os dados do Censo de 2010, calculamos a composição racial das áreas atendidas por cada Batalhão de Polícia Militar (BPM) do Rio. Estas proporções foram comparadas com as estatísticas de mortes cometidas por policiais nas mesmas áreas entre 2010 e 2020. Com isso, foi possível determinar se havia uma sobrerrepresentação de um grupo racial dentre as vítimas dos homicídios policiais, isto é, se algum grupo morria mais do que seria esperado dada a população local.

Na região metropolitana do Rio, fica evidente que a proporção de negros mortos em cada BPM é praticamente constante, e não depende da população negra do local.

Como mostra o gráfico, certas áreas têm uma alta letalidade de negros, mesmo tendo uma população negra pequena. Dentre essas áreas de maior sobrerrepresentação figuram os batalhões responsáveis por bairros nobres da capital fluminense, como o 2º BPM (Zona Sul), o 19º BPM (Copacabana) e o 6º BPM (Tijuca). Nos BPM da Zona Sul e de Copacabana, a fração de negros entre as vítimas da PM é 4,6 vezes maior do que sua proporção na população local.

Essas sobrerrepresentações deixam claro que as mortes de negros não se devem somente à polícia atuar mais em bairros menos brancos. Independentemente da composição racial do BPM, pretos e pardos são os alvos consistentes das ações policiais.

No interior, a sobrerrepresentação de mortes de pretos e pardos pela polícia tende a ser menor do que na região metropolitana. Mas ela ainda ocorre: a sobrerrepresentação média de negros mortos por BPMs do interior é de 28 pontos percentuais. Também há uma variação maior entre os BPMs do interior no que tange à letalidade policial de negros.

No estado como um todo, a sobrerrepresentação de negros entre os mortos pela polícia é maior até mesmo que a sobrerrepresentação de negros nas taxas de homicídios em geral do estado. Dentre todos os homicídios cometidos entre 2010 e 2020, o 7 de cada 10 mortos eram negros. No entanto, eles eram 8 a cada 10 dos mortos pela polícia. Esse dado sugere que há um racismo intrínseco ao uso de força por parte das polícias fluminenses, que vai além dos fatores socioeconômicos que já tornam a população negra mais vulnerável à violência.


O racismo na atuação das forças policiais não é novidade. Em sua coluna na Folha de São Paulo, o advogado e professor Silvio Almeida lembra como a presunção de culpa racializada de hoje — vide os policiais falando de mortos como suspeitos antes sequer de serem identificados os corpos — representa uma continuidade da maneira como negros eram tratados no século XIX, presumidos escravos fugidos até que se provasse o contrário.

Este fato voltou à tona nas redes sociais e veículos de mídia no Brasil após uma operação deflagrada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro na favela do Jacarezinho deixar 28 moradores e um policial morto no início deste mês. Além de chocar pela extrema violência, a operação também escancarou a desigualdade racial intimamente ligada às questões de segurança pública no Brasil, já que a maioria dos mortos na chacina do Jacarezinho eram negros.

Estas mortes somam-se às altas taxas de violência policial que há tempos são uma marca das polícias brasileiras. Em 2019, ao menos 5.804 pessoas foram mortas pelas forças policiais no país, e o estado do Rio de Janeiro foi o estado com a segunda maior taxa de assassinados pela polícia — 10,5 mortes por 100 mil habitantes —, atrás apenas do Amapá.

Em fevereiro deste ano, o Pindograma publicou uma matéria mostrando como a realização de operações policiais do tipo não reduziu o crime no Rio entre 2003 e 2019. Em abril, publicamos na revista piauí outro texto que demonstrava o mesmo: a proibição das operações no Rio de Janeiro durante a pandemia não afetou a ocorrência de crimes violentos no período.


Dados utilizados na matéria: Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (ISP/RJ); Óbitos por Homicídio (Ministério da Saúde); Censo Demográfico 2010 (IBGE).

Contribuiu com Dados Daniel Ferreira.

Para reproduzir os gráficos e números da matéria, o código pode ser encontrado aqui.

Créditos da imagem: Leonardo Wen/Reprodução, Marcella Saraceni/Agência de Notícias das Favelas.

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João Gado F. Costa é repórter do Pindograma.

Polícia mata negros desproporcionalmente em todas as subdivisões do Rio de Janeiro

Independentemente da composição racial do bairro, quase todas as mortes causadas por policiais atingem negros

POR JOÃO GADO F. COSTA

01/06/2021

No estado do Rio de Janeiro, negros correspondem a 80% dos mortos pela polícia. O número é 28,3 pontos percentuais maior que a proporção deste grupo racial na população do estado (51,7%). A taxa de negros mortos pela polícia também é 6,5 pontos percentuais maior do que a proporção morta em homicídios no geral (73,5%, segundo dados do Ministério da Saúde).

Uma hipótese que poderia explicar o número de negros mortos pela polícia ser tão alto é a seguinte: policiais atuariam mais em regiões menos brancas, aumentando a chance de um morador preto ou pardo ser morto. No entanto, um levantamento feito pelo Pindograma mostra que a proporção de pretos e pardos mortos por policiais é maior do que a proporção de moradores negros em todos os Batalhões de Polícia Militar do estado.

Utilizando os dados do Censo de 2010, calculamos a composição racial das áreas atendidas por cada Batalhão de Polícia Militar (BPM) do Rio. Estas proporções foram comparadas com as estatísticas de mortes cometidas por policiais nas mesmas áreas entre 2010 e 2020. Com isso, foi possível determinar se havia uma sobrerrepresentação de um grupo racial dentre as vítimas dos homicídios policiais, isto é, se algum grupo morria mais do que seria esperado dada a população local.

Na região metropolitana do Rio, fica evidente que a proporção de negros mortos em cada BPM é praticamente constante, e não depende da população negra do local.

Como mostra o gráfico, certas áreas têm uma alta letalidade de negros, mesmo tendo uma população negra pequena. Dentre essas áreas de maior sobrerrepresentação figuram os batalhões responsáveis por bairros nobres da capital fluminense, como o 2º BPM (Zona Sul), o 19º BPM (Copacabana) e o 6º BPM (Tijuca). Nos BPM da Zona Sul e de Copacabana, a fração de negros entre as vítimas da PM é 4,6 vezes maior do que sua proporção na população local.

Essas sobrerrepresentações deixam claro que as mortes de negros não se devem somente à polícia atuar mais em bairros menos brancos. Independentemente da composição racial do BPM, pretos e pardos são os alvos consistentes das ações policiais.

No interior, a sobrerrepresentação de mortes de pretos e pardos pela polícia tende a ser menor do que na região metropolitana. Mas ela ainda ocorre: a sobrerrepresentação média de negros mortos por BPMs do interior é de 28 pontos percentuais. Também há uma variação maior entre os BPMs do interior no que tange à letalidade policial de negros.

No estado como um todo, a sobrerrepresentação de negros entre os mortos pela polícia é maior até mesmo que a sobrerrepresentação de negros nas taxas de homicídios em geral do estado. Dentre todos os homicídios cometidos entre 2010 e 2020, o 7 de cada 10 mortos eram negros. No entanto, eles eram 8 a cada 10 dos mortos pela polícia. Esse dado sugere que há um racismo intrínseco ao uso de força por parte das polícias fluminenses, que vai além dos fatores socioeconômicos que já tornam a população negra mais vulnerável à violência.


O racismo na atuação das forças policiais não é novidade. Em sua coluna na Folha de São Paulo, o advogado e professor Silvio Almeida lembra como a presunção de culpa racializada de hoje — vide os policiais falando de mortos como suspeitos antes sequer de serem identificados os corpos — representa uma continuidade da maneira como negros eram tratados no século XIX, presumidos escravos fugidos até que se provasse o contrário.

Este fato voltou à tona nas redes sociais e veículos de mídia no Brasil após uma operação deflagrada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro na favela do Jacarezinho deixar 28 moradores e um policial morto no início deste mês. Além de chocar pela extrema violência, a operação também escancarou a desigualdade racial intimamente ligada às questões de segurança pública no Brasil, já que a maioria dos mortos na chacina do Jacarezinho eram negros.

Estas mortes somam-se às altas taxas de violência policial que há tempos são uma marca das polícias brasileiras. Em 2019, ao menos 5.804 pessoas foram mortas pelas forças policiais no país, e o estado do Rio de Janeiro foi o estado com a segunda maior taxa de assassinados pela polícia — 10,5 mortes por 100 mil habitantes —, atrás apenas do Amapá.

Em fevereiro deste ano, o Pindograma publicou uma matéria mostrando como a realização de operações policiais do tipo não reduziu o crime no Rio entre 2003 e 2019. Em abril, publicamos na revista piauí outro texto que demonstrava o mesmo: a proibição das operações no Rio de Janeiro durante a pandemia não afetou a ocorrência de crimes violentos no período.


Dados utilizados na matéria: Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (ISP/RJ); Óbitos por Homicídio (Ministério da Saúde); Censo Demográfico 2010 (IBGE).

Contribuiu com Dados Daniel Ferreira.

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Créditos da imagem: Leonardo Wen/Reprodução, Marcella Saraceni/Agência de Notícias das Favelas.

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João Gado F. Costa

é repórter do Pindograma.

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