No mês passado, grande parte dos decretos pró-armas editados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi revogada pela ministra do STF Rosa Weber. Esse embate foi mais um desdobramento da empreitada armamentista do atual governo, que já enfrentou outros reveses similares no Congresso e na Justiça, como no caso dos decretos de flexibilização do Estatuto do Desarmamento apresentados em 2019.
Esse cabo de guerra nas esferas políticas tem tido impactos reais sobre o comércio brasileiro de armas. Em anos recentes, o mercado vem aumentando rapidamente, com mais armas sendo compradas e mais clubes de tiro esportivo surgindo. Parte da mídia e academia atribui essas mudanças à ascensão da extrema-direita e ao governo Bolsonaro. Afinal, o presidente e seus apoiadores têm o armamento como uma das suas principais pautas, visto como uma maneira de resolver os problemas de segurança pública no país. E, como é possível ver por decretos e projetos de lei, os políticos de extrema-direita vêm facilitando a aquisição de armas.
O armamentismo, porém, antecede a posse de Bolsonaro em 2019. Dados levantados pelo Pindograma indicam que o mercado formal de armas começou a se expandir já no governo Dilma. Durante o mandato da petista, os número anual de armas novas cresceu 50%, e durante o de Temer, 86%. Entre a primeira posse de Dilma e a posse de Bolsonaro, os registros anuais de armas novas já haviam crescido 2,8 vezes. O governo Bolsonaro intensificou essa tendência, e em apenas dois anos de mandato, fez esse número aumentar mais 2,8 vezes:
Em entrevista ao Pindograma, a gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, explicou que 2015 “foi um ano em que [o movimento pró-armas], um tema que estava praticamente esquecido na política brasileira, voltou a um nível nacional”. Naquele ano, um projeto de lei adormecido, que ditava o fim do Estatuto do Desarmamento, voltou à Câmara com força e “chegou na boca de ser aprovado”, como confirma Pollachi.
Segundo ela, o movimento pró-armas “começou a proliferar e ganhar um volume que não tinha antes no debate público – audiências públicas na Câmara, no Senado e apresentação de muitos projetos de lei nesse sentido e também nos fóruns online”.
Há poucos dados sobre o volume de atividade online pró-armas na última década, mas é notável a relevância que o movimento tem mostrado no Instagram nos últimos quatro anos. Um levantamento do Núcleo Jornalismo indica que as postagens armamentistas praticamente dobraram entre 2017 e 2021. Trata-se de um movimento diverso que mistura a questão armamentista com marcadores de identidade, como evidenciado pelas hashtags #mulheresarmadas, #tiroesportivo e #eusoumilitar.
A expansão desse mercado também foi distribuída de maneira diferente pelos estados brasileiros. No Distrito Federal, em Goiás e no Tocantins, por exemplo, o número anual de armas novas já havia aumentado oito vezes entre 2010 e 2018, antes de aumentar mais ainda a partir de 2019:
Outras unidades da federação tiveram um aumento menos relevante entre 2011 e 2018 e um crescimento visivelmente mais dramático após o início do governo Bolsonaro. É o caso dos estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima:
Ao mesmo tempo, desde o início do governo Bolsonaro, o número de armas destruídas vem caindo. Em 2019, ele foi ultrapassado pelo número de armas novas adquiridas por não-militares no mercado legal. Ou seja: mesmo pelas estimativas mais conservadoras, o saldo numérico de armas fora das mãos do Estado está cada vez mais positivo.
Tudo isso resulta no seguinte quadro: em janeiro de 2021, empresas de segurança privada e pessoas físicas (exceto militares, policiais civis e policiais militares) tinham aproximadamente 1.378.370 armas com registros ativos – para não falar das armas irregulares.
Com o aumento generalizado no número de armas, seria razoável prever que haveria também um aumento no número de apreensões de armas irregulares e ilegais pela polícia.
O que vem ocorrendo, no entanto, é o contrário. Desde 2017, esse número vem se tornando cada vez menor:
Forma-se então um cenário contra-intuitivo de expansão do mercado formal armamentista, acompanhado de diminuições nas apreensões e destruições de armas.
Há algumas hipóteses para explicar o fenômeno, nem todas se revelando plausíveis.
1) A polícia estaria mais leniente
A primeira hipótese seria a leniência das polícias com quem tem armas – inclusive com os que tenham posse irregular. Dada a ligação entre os policiais e o bolsonarismo, é plausível que tenha havido uma mudança de comportamento nas corporações com a ascensão da extrema-direita. Ivan Marques, presidente da campanha internacional Control Arms, sugere no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 que “a diminuição das apreensões é… sinal de redução de interesse neste tipo de operação”.
Os problemas na fiscalização também atingem o universo do tiro esportivo. Como afirmou o mesmo Ivan Marques em uma entrevista para O Globo, havia grandes dificuldades para fiscalizar os clubes de tiro esportivo, o que era feito apenas raramente. Segundo o especialista, a falta de fiscalização vem se tornando ainda mais grave nos últimos anos. Ele vê indícios de leniência frente a eventuais irregularidades praticadas pelos clubes de tiro.
Entretanto, há um dado que vai contra essa hipótese. Em São Paulo, as apreensões de armas entre profissionais de segurança pública não têm diminuído. Isso torna mais difícil afirmar que as polícias tenham se tornado mais lenientes com a posse ilegal de armas. Se houvesse leniência de fato, seria de se esperar que os profissionais da área da segurança tivessem tido uma queda de apreensões maior do que outras profissões, dado o corporativismo.
2) Apreender armas ilegais está mais difícil
Uma segunda hipótese está ligada a mudanças no mercado de armas ilegais no Brasil. Segundo Pollachi, “essas armas que tão aí na rua, nessa dinâmica mais simples, como se fosse o varejo da droga, que tão ali fáceis de serem abordadas, fáceis de serem pegas num flagrante, estão rareando”. Ela acredita que o mercado esteja migrando para dinâmicas mais complexas, o que indica uma crescente dificuldade em apreender armas ilegais.
3) A expansão do mercado formal não teria sido acompanhada pelo mercado ilegal
Uma terceira hipótese para explicar esse problema nos dados seria a expansão do mercado formal de armas não ter sido acompanhada por um crescimento do mercado ilegal. Por alguma razão interna ao mundo do crime, a circulação de armas ilegais estaria diminuindo entre criminosos, embora o número geral de armas esteja aumentando.
É difícil estimar o número de armas ilegais. No Brasil, a última estimativa relativamente confiável do número de armas ilegais foi feita em 2010 pelo Ministério da Justiça. O levantamento estimava cerca de 7,6 milhões. Outro estudo, feito pela Universidade de Sydney, estima que o número de armas ilegais esteja entre 3 e 9 milhões, seguindo a metodologia de um relatório da UNODC, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, de 2010.
No entanto, a hipótese mais aceita pelos especialistas é de que o aumento do mercado legal de armas transborda no mercado ilegal. Natália Pollachi explica que “por a gente ter mais armas legais em circulação, fica muito mais fácil de ter armas indo da legalidade para o mercado ilegal”.
Se algumas categorias de compradores passam a ter que prestar contas apenas se comprarem 60 armas por vez, como permite um dos decretos recentes de Bolsonaro, isso pode abrir a possibilidade de revenda para o mercado ilegal, através de compradores aliciados por criminosos. Além disso, como alerta Pollachi, vem se tornando mais fácil para pessoas com antecedentes criminais comprarem armas com identidades falsas.
Além de ser extremamente improvável num contexto de aumento no número geral de armas, uma redução no número de armas ilegais também tenderia a ser acompanhada por uma diminuição no número de crimes violentos. Mas entre 2019 e 2020, não foi isso que ocorreu. De acordo com o Anuário da Violência de 2020, o número de homicídios dolosos no país aumentou em 8,4%. Além disso, o mesmo Anuário indica que o número de policiais assassinados, um crime que geralmente ocorre por ação de arma ilegal, aumentou em 19,4%.
4) Armas ilegais teriam sido regularizadas, dada a flexibilização promovida pelo governo
Uma última hipótese que poderia ser levantada é que mais flexibilizações permitiriam a regularização de armas ilegais. Mas isso é impossível. Uma arma adquirida sem registro no Brasil não pode ser registrada posteriormente. Como explica Pollachi: “Não existe mais a possibilidade de ‘anistia’ que existia de 2004 a 2008”.
Refletir sobre essas hipóteses só é possível porque há instituições que coletam e divulgam dados relativos às armas no Brasil. Porém, há indícios de que as escassas fontes de informação estão se tornando mais desorganizadas e menos cristalinas.
Em um texto publicado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, o pesquisador Ivan Marques explica que “a instabilidade jurídica promovida pelo sem-fim de decretos e alterações de portarias publicadas pelo Governo Federal a partir de janeiro de 2019” vem contribuindo para a baixa qualidade das estatísticas. Com as constantes mudanças, os registros tornaram-se desatualizados e não há esforços para conduzir atualizações dos bancos de dados.
Assim, não é possível determinar o total de armas legais existentes no Brasil, mesmo que possamos observar, nos últimos anos, um crescimento agudo nos registros de armas novas. A tendência é de que muitos dados sigam inacessíveis, pois, de acordo com Marques, são tantos “os novos critérios e classificações que se perdeu a comparabilidade entre categorias daqueles que, por lei ou norma infralegal, devem registrar sua arma nos bancos de dados oficiais”.
Esse cipoal de informações também foi identificado em um relatório feito para a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) da Câmara dos Deputados, segundo o qual “em pleno século XXI, a segurança pública opera em muitos estados como funcionava a burocracia cartorial do século XVIII”.
E isso é apenas em relação às armas legais. As deficiências nos registros de armas são um passeio no parque comparado ao mundo dos dados sobre armas ilegais. Há diversas metodologias para estimativas do número de armas ilegais no país feitas nos últimos anos, mas elas diferem-se bastante entre si e não é possível chegar em conclusões concretas. São geralmente superficiais, o que apenas serve para ressaltar como não há informações disponíveis sobre o número de armas ilícitas.
Portanto, nos próximos anos, será complexo determinar se as armas legais estão de fato migrando para o crime. Esse problema é reforçado pelo fato de que as fontes de dados sobre armas legais estão se tornando cada vez mais escassas. Restará observar se os aumentos nos números de armas levarão a um aumento dos índices de violência, em um país que é um dos mais violentos do mundo. A literatura e os especialistas parecem indicar que sim. Mas sem dados confiáveis, não é possível compreender o problema para resolvê-lo.
Dados utilizados na matéria: Agregações do Sinarm (Polícia Federal); Agregações do Sigma (Exército Brasileiro); Apreensões de Armas (Fórum Brasileiro de Segurança Pública); Armas Destruídas (Exército Brasileiro). Todos os dados foram obtidos através da Lei de Acesso à Informação.
Para reproduzir os gráficos e números citados na matéria, o código pode ser encontrado aqui.
Créditos da imagem: Mika Järvinen/Flickr, Stephen Z/Flickr, Brian Vasconcellos/Flickr, Confederação Nacional de Municípios.
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