Se você quiser entender melhor o papel do Ministério Público em uma investigação criminal, recomendamos esse artigo do Pindograma.
Hoje, menos de 5% dos homicídios são julgados no estado do Rio de Janeiro. Mas mesmo este acesso precário à justiça não é distribuído igualmente entre quem mora lá. Dados inéditos revelam que algumas promotorias do estado recebem mais recursos do que outras a despeito de terem menos demanda. Em paralelo, algumas promotorias são menos eficientes do que outras ao lidar com demandas equivalentes.
Um cidadão carioca residente no bairro de Madureira, por exemplo, tem muito menos promotores ao seu dispor do que alguém que mora na Tijuca. E ainda é possível que, por azar, o seu caso caia nas mãos de uma promotoria menos eficiente do que as outras em Madureira.
É o que mostram dados do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) organizados pelo Projeto Farol, que permitem analisar de maneira aprofundada o trabalho do sistema de justiça criminal do estado.
Nesta matéria, o Pindograma revela a má alocação de recursos do MP no território fluminense, o desempenho heterogêneo de promotorias mesmo quando têm demandas parecidas, e como o sistema é menos eficiente para certos crimes.
Muita demanda, pouco recurso
Desde março de 2020, a capital do estado e dez cidades do entorno estão divididas entre 13 áreas de atuação do Ministério Público. Algumas dessas áreas ocupam vários municípios (como a de Nova Iguaçu), enquanto outras cobrem apenas certas regiões da capital (como a de Botafogo/Copacabana).
Quando um crime ocorre em uma dessas 13 áreas, o inquérito policial deve ser distribuído aleatoriamente para uma das várias promotorias de investigação penal que atuam dentro da área. A área de atuação de Nova Iguaçu, por exemplo, tem quatro promotorias – e qualquer uma delas pode receber um inquérito que ocorra na área. (As exceções são os crimes de violência doméstica, que são distribuídos para promotorias especializadas).
O problema é que algumas áreas de atuação recebem menos recursos do que outras. De acordo com dados do MPRJ, entre março e dezembro de 2020, chegaram 936 inquéritos policiais para cada promotoria da área de Madureira/Jacarepaguá. Enquanto isso, chegaram apenas 501 inquéritos por promotoria na área do Méier/Tijuca. Isso significa que as promotorias de Madureira/Jacarepaguá têm de servir quase o dobro da demanda do Méier/Tijuca com praticamente a mesma quantidade de recursos.
A situação costumava ser bem pior: antes de uma reorganização das promotorias em março de 2020, havia diferenças ainda maiores entre as demandas de diferentes promotores. A reorganização das promotorias na capital e em algumas cidades do entorno é fruto dos esforços do então Procurador-Geral Eduardo Gussem e do Centro de Pesquisas do MPRJ, que buscaram reequilibrar as demandas de cada promotoria no estado.
No entanto, sem poder criar promotorias novas, foi impossível para os reorganizadores resolver todas as distorções de demanda. Se uma única promotoria do Méier, por exemplo, fosse transferida para Madureira, a área Méier/Tijuca passaria a ser a área mais mal-servida pelo Ministério Público na cidade. A solução seria criar uma nova promotoria em Madureira – tarefa difícil em tempos de crise.
No interior, por outro lado, há pelo menos uma assimetria entre recursos de promotorias que parece menos justificável. Desde janeiro de 2016, a promotoria de investigação penal de Volta Redonda recebe quase duas vezes mais inquéritos que a promotoria de Barra Mansa, cidade vizinha (12.865 contra 7.602 inquéritos). A fusão dessas duas cidades em uma única área de atuação do Ministério Público poderia diminuir essas diferenças e proporcionar um acesso mais equânime à justiça em ambos os municípios.
A Produtividade das Promotorias
De toda forma, a reorganização das promotorias trouxe uma vantagem inédita para quem busca entender o funcionamento do MPRJ: onde ela entrou em vigor, passou a ser possível comparar o desempenho de promotorias na mesma área de atuação. Isso ocorre porque os crimes que ocorrem em cada área de atuação são distribuídos aleatoriamente para qualquer uma das promotorias na área.
Dentre as áreas que já distribuem os inquéritos aleatoriamente, há duas que chamam a atenção. Nas áreas de Madureira/Jacarepaguá e de Duque de Caxias, a taxa de finalização das promotorias varia muito. (A taxa de finalização é a porcentagem de inquéritos policiais denunciados pelo Ministério Público ou arquivados por falta de provas ou fundamento legal. Os não-finalizados são os casos que ainda estão sendo investigados ou que o Ministério Público ainda não apreciou.)
A área de Madureira/Jacarepaguá possui três promotorias diferentes recebendo inquéritos do mesmo território. Entre março e dezembro de 2020, a 1ª Promotoria conseguiu arquivar ou denunciar 18% dos inquéritos que recebeu. A 2ª atingiu uma taxa de 13% e a 3ª Promotoria vem muito atrás, com apenas 6,2%.
A área de Duque de Caxias que apresenta variação ainda maior nas taxas de finalização:
São variações que contrastam com as taxas de finalização na área de atuação de Botafogo/Copacabana. Lá, o desempenho das promotorias é bem parecido: entre março e dezembro de 2020, a 1ª teve taxa de finalização de 14,4% e a 2ª, de 18,8%.
A promotora titular da 5ª Promotoria de Duque de Caxias, que obteve a taxa de finalização mais baixa da sua área, explica que isso se deveu a uma falha de preenchimento no sistema do MP. “Isso gerou uma diferença entre meu órgão e os demais porque de fato, não fizemos os procedimentos de forma correta. São falhas que estamos trabalhando para corrigir e que deverá ser espelhada na estatística anual”, afirmou.
As outras promotorias, no entanto, não explicaram o baixo desempenho ao Pindograma.
Crimes diferentes, desempenhos diferentes
A destreza do promotor não é o único determinante da eficiência no tratamento de um inquérito pelo Ministério Público. O tipo de crime tem um impacto enorme sobre o tratamento que ele recebe do sistema de justiça criminal.
Dentre as 60.187 denúncias de crime feitas pelo MP desde março de 2020, o crime mais comum é o de roubo, com 7.908, ou 13%, das denúncias. Esse tipo de crime é denunciado rapidamente, com um tempo mediano de apenas 19 dias – o que ocorre porque muitas das denúncias resultam de prisões feitas em flagrante pela PM, facilitando o processo de investigação.
O segundo lugar fica com o crime de lesão corporal decorrente de violência doméstica, que representou 12% das denúncias. O tempo de denúncia mediano já é bem maior – de 54 dias. Caso se somassem a esse número denúncias de outros crimes de violência doméstica, como ameaça, a cifra chegaria a 13%, com 8.089 denúncias. Não à toa, existem promotorias especializadas no assunto.
Entre os crimes com mais de 100 denúncias em 2020, o que tem o tempo mediano de denúncia mais alto – um ano e quatro meses – é o de promoção, constituição, financiamento ou integração de organização criminosa. Já o crime com tempo mediano mais curto é o de porte de arma de fogo com identificação raspada ou adulterada. Quando a polícia apreende esse tipo de arma, já há a prova do crime, o que facilita muito a denúncia.
Por ora, o MPRJ ainda não divulgou dados que permitam analisar o quanto a natureza dos crimes afeta a taxa de finalização de cada promotoria. Mas quando os números estiverem disponíveis, o Pindograma retornará ao assunto.
Dados utilizados na matéria: Desempenho do Ministério Público do Rio de Janeiro (CENPE/MPRJ).
Contribuiu com dados: Daniel Ferreira.
Crédito da imagem: Divulgação/Ministério Público do Rio de Janeiro.
Para reproduzir os números da matéria, o código e os dados podem ser encontrados aqui.
[Gostou do nosso conteúdo? Siga-nos no Twitter, no Facebook e no Instagram.]