O Brasil passou por um aumento vertiginoso de violência na última década, e parte do problema vem da ineficiência dos órgãos do Estado que deveriam proteger os cidadãos. A polícia brasileira, por exemplo, é a mais violenta do mundo, embora mostre poucos resultados no combate ao crime. Ao mesmo tempo, não se abre processo na Justiça esperando uma resolução rápida.
Aqui, o Pindograma explica pra você como funciona, na teoria e na prática, o sistema de justiça criminal no Rio de Janeiro – e quem são os responsáveis pelo seu mau desempenho. Dos casos de homicídio registrados em 2015 no estado, apenas 3,5% foram julgados até o final de 2019.
O passo a passo da justiça criminal
O Brasil não possui um sistema de justiça criminal unificado a nível nacional. Com exceção de certos crimes que demandam investigações federais, como lavagem de dinheiro, os órgãos que lidam com esse tema são estaduais.
Quando um crime acontece, o Estado lida com ele em três etapas. A primeira é o Registro de Ocorrência (o B.O.), protocolado na Polícia Civil. Esta polícia então coleta provas, recolhe depoimentos de testemunhas e analisa a cena do crime. Essas informações são compiladas em um Inquérito Policial, que é então repassado a uma das promotorias do Ministério Público (MP).
Há, porém, muitos casos que não são resolvidos pela polícia. Esses inquéritos inconclusivos são devolvidos à Polícia pelo Ministério Público para que a investigação seja aprofundada.
Quando a polícia resolve o crime, a segunda etapa é a análise do Inquérito Policial pelo Ministério Público. Após essa análise, o inquérito pode seguir dois caminhos: a denúncia ou o arquivamento. A denúncia ocorre quando os promotores julgam que há provas suficientes contra o investigado e que a conduta do investigado se encaixa em algum crime previsto na legislação. A denúncia é mandada, então, aos tribunais. A outra opção de finalização do inquérito é o arquivamento, que ocorre quando a promotora responsável acredita não haver provas suficientes contra o investigado.
Se o inquérito virar uma denúncia, a terceira etapa é a sua tramitação dentro do Tribunal de Justiça. Quando isso acontece, o procedimento depende do crime.
Nos tribunais, a promotoria faz a acusação do réu baseada nas provas coletadas pela Polícia Civil e o pelo próprio MP, enquanto um advogado — ou a Defensoria Pública, caso o réu não tenha condições de pagar por sua defesa — tem o papel de defender o réu.
Na maioria dos crimes, cabe ao juiz decidir se o investigado é culpado ou inocente. Posteriormente, a decisão do juiz (a sentença) pode ser revista por um juiz de uma instância superior, o desembargador.
Já os homicídios e outros crimes intencionais contra a vida são julgados por um júri. Por isso, demandam uma tramitação em dois passos: a Pronúncia e a Sentença.
Primeiro, o juiz avalia se há elementos suficientes para a denúncia ser julgada. Se o juiz acreditar que sim, há a chamada sentença de pronúncia, e a denúncia segue para o Tribunal do Júri. Se não houver a sentença de pronúncia, o processo não prossegue.
Depois, no julgamento, o júri deve decidir sobre a culpa do acusado. Com base na decisão do júri, o juiz calcula a pena e lê a sentença.
Independente da sentença, seja ela de culpa ou de absolvição, tanto acusação quanto a defesa podem recorrer à instância superior para questionar o veredito do júri. Se o juiz da instância superior achar que o júri tenha ignorado provas em sua decisão, ele pode pedir que o processo seja julgado de novo com outro júri. Procuradores e advogados também podem questionar o cálculo de pena do juiz de primeira instância.
O mau desempenho do sistema de justiça criminal
Na prática, é raro que uma ocorrência percorra todos esses passos até chegar no julgamento. Uma janela para esses problemas é o Projeto Farol, desenvolvido pelo Centro de Pesquisa do Ministério Público do Rio de Janeiro (CENPE/MPRJ). O projeto compilou, pela primeira vez, dados básicos sobre o sistema criminal no Rio de Janeiro e passou a permitir um mapeamento inédito de quão bem — ou mal — cada peça do sistema funciona. O primeiro relatório publicado pelo projeto focou no andamento dos crimes de homicídio.
O problema começa com a sobrecarga da Polícia Civil e do Ministério Público, que dividem as atribuições de investigação no estado do Rio de Janeiro. No estado, apenas 36,4% das investigações de homicídio abertas em 2015 foram concluídas até o final de 2019. As outras 70,3% não foram concluídas. Parte desses 70,3% são casos que a polícia não conseguiu resolver – ou mesmo investigar, por falta de recursos. Outra parte são casos resolvidos, mas que o MP ainda não decidiu se denuncia ou arquiva.
Dos inquéritos finalizados, apenas 42,1% viraram denúncias. O resto é arquivado pelo MP por falta de provas, ou por não haver fundamento jurídico para buscar a condenação de alguém.
Mesmo os inquéritos denunciados, que seguem para a Justiça, podem ficar atolados no tribunal. Até o fim de 2019, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou apenas 23,9% das denúncias que o MP apresentou relativas a homicídios registrados em 2015.
O resultado é que apenas 3,5% dos homicídios registrados em 2015 foram julgados até o final de 2019:
Mesmo as poucas ocorrências que são julgadas demoram para chegar lá. O tempo mediano para que um inquérito policial de homicídio chegue no MP é de dois meses e meio. Para a denúncia, o tempo é de mais dois meses e meio. Mas uma vez no Tribunal de Justiça, o tempo mediano para que um processo seja julgado é de dois anos:
Até mesmo conseguir informações sobre o andamento desses casos é complicado. A integração entre os sistemas informatizados da Polícia, do MP e do Tribunal de Justiça é precária. Por isso, pesquisadores não conseguem saber o que aconteceu com 42% dos inquéritos de homicídio doloso denunciados pelo MP no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Esses inquéritos não estão incluídos entre as ocorrências analisadas acima.
Apesar das dificuldades, ainda é possível pintar um retrato da atuação do sistema de justiça criminal. Há muitos gargalos que, somados, fazem com que o sistema responda muito mal aos níveis de violência da sociedade brasileira.
De toda forma, os fatores mencionados até agora variam de acordo com crimes diferentes e com as condições específicas de cada região do estado. Para dar um exemplo, a investigação de um inquérito de homicídio doloso em Duque de Caxias, cidade populosa da baixada fluminense e com taxas de criminalidade altas, é muito diferente de uma investigação de homicídio em algum município serrano como Petrópolis, onde a população é menor, há menos crimes e os órgãos do sistema de justiça criminal são menos sobrecarregados.
A complexidade e grande diversidade de resultados dependendo da região e do crime será o assunto de outra matéria do Pindograma.
Crédito da imagem: Divulgação/Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
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