De Dilma a Bolsonaro: como votam as favelas do Rio


Voto evangélico e atuação de ONGs explicam diferenças no comportamento eleitoral de comunidades cariocas
POR FRANCISCO RICCI • 07/09/2020

“Alô? Com quem eu falo?” Uma versão acústica de Ninguém Explica Deus toca ao fundo da chamada. “Eu poderia falar com um pastor da igreja? Estamos tentando conversar com líderes locais para entender o voto nas favelas da região”. Uma voz veio ao telefone e, finalmente, o pastor de uma igreja metodista havia se disposto a conversar com a reportagem.

“Mas as perguntas são sobre política?”

“Sim”.

E o telefone desliga.


Hoje, mais de um quinto dos cariocas moram em uma das mais de mil favelas da cidade. Essas comunidades são parte central da cultura e identidade do Brasil, mas o seu comportamento político ainda é pouco explorado. Como, afinal, votam as favelas do Rio de Janeiro?

Para responder à pergunta, o Pindograma construiu um mapa detalhado de como elas votam. Usando bases do Governo Federal e o Google Maps, a reportagem localizou cada uma das 15.861 seções eleitorais do Rio de Janeiro. Então, cruzamos essas seções com as áreas das favelas com mais de mil pessoas, segundo dados da Prefeitura do Rio, e analisamos os resultados das últimas eleições presidenciais:

Bolsonaro obteve maioria em quase todas as favelas do Rio com mais de mil residentes – o atual presidente foi vitorioso em 205 comunidades, somando 1.248.212 moradores. Enquanto isso, Haddad venceu em somente 11 favelas, somando 176.399 moradores.

No entanto, essa transição do PT para Bolsonaro não ocorreu de maneira uniforme pela cidade. Nas favelas da região central, a porcentagem de votos para o candidato do PT caiu 23%. Na Zona Norte, essa queda foi de 34%, e na Zona Oeste, de 41%. Foi somente nas favelas da Zona Sul que o voto no PT cresceu entre 2014 e 2018.

Especialistas que estudam o voto do Rio sugerem três causas para explicar essa diferença: o voto evangélico, a presença de organizações comunitárias de esquerda, e a atuação de milícias.

I) O Voto Evangélico

A importância do voto evangélico para a eleição de Jair Bolsonaro não é novidade. Segundo pesquisa Datafolha realizada a três dias do segundo turno em 2018, 56% dos brasileiros declararam voto no atual presidente; já entre os evangélicos, esse percentual foi de 69%.

O voto evangélico também explica boa parte da diferença no comportamento eleitoral entre favelas da cidade. Na Zona Oeste, os evangélicos representam 28% da população, enquanto a média da Zona Norte é de 21%, e no Centro, de 16%. Santa Cruz – bairro no extremo oeste da cidade – foi a primeira região da cidade a ter mais evangélicos que católicos, segundo o Censo de 2010.

O pastor Adelson, da Assembleia de Deus de Santa Cruz, falou ao Pindograma sobre o comportamento eleitoral dos fiéis. “Depois da crise econômica, não tem como fugir do desemprego. A população aqui foi mais afetada. A vida piorou. E quem oferece cesta básica, ajuda com moradia, emprego? A igreja. Sempre juntamos uma ajuda para um irmão que precisa. Antes, os membros da congregação, alguns apoiavam o governo do PT, outros não. Mas quase todo mundo mudou de ideia. Cansaram da roubalheira”.

Os dados confirmam as impressões do pastor. As favelas em áreas mais evangélicas da cidade não demonstraram forte oposição ao PT nas eleições de 2014. No entanto, apoiaram Bolsonaro com força em 2018:

O alinhamento do voto evangélico a determinados candidatos não é um fenômeno inédito. Em 2014, áreas do Rio com maior presença de evangélicos já votavam mais em candidatos conservadores para o Legislativo, e já davam mais votos que os católicos a Marcelo Crivella, então um pastor licenciado. Mas foi só em 2018 que o voto evangélico pesou em uma eleição presidencial.

O pesquisador Ignacio Cano, especialista em segurança pública e política do Rio de Janeiro, compartilha dessa avaliação. Segundo o pesquisador, “os eleitores evangélicos não se consolidaram no voto antipetista no passado. Nos debates presidenciais de 2014, Dilma evitava dar opinião sobre a legalização do aborto, com medo de perder parte relevante do voto evangélico. Em 2018 o Partido dos Trabalhadores já perdeu quase todo esse voto. Esse descolamento foi parte por pragmatismo, parte pela desmoralização do governo”.

Há muitas razões para a adesão dos evangélicos a Bolsonaro: o conservadorismo moral, a oposição à corrupção do PT, e o ativismo de fiéis bolsonaristas junto a suas comunidades religiosas. Para Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus que apoiou a candidatura do presidente, “o grande erro da esquerda” foi ter apoiado o “aborto, ideologia de gênero, casamento gay, liberação de drogas” – pautas que Bolsonaro opôs por toda a sua carreira.

Mas nenhum desses motivos pode ser reduzido a uma crença de que os evangélicos são meramente manipulados pelos líderes religiosos, tanto segundo especialistas, quanto segundo os próprios pastores. O pastor Adelson afirma que nunca instruiu o voto de ninguém: “Não conheço aqui nenhum pastor que faça isso. Que direcione o voto assim. Nós entendemos da Bíblia – o voto de cada fiel é pessoal e individual. Pastor que fala em quem votar deveria responder na Justiça. Na congregação, convivemos com o diferente. Por isso que chamamos o Brasil de democracia, não?”

II) Quadros Políticos Locais

Mas pastores não são as únicas pessoas que exercem influência no pensamento popular e no voto. No dia-a-dia, outras lideranças locais pensam, organizam, e promovem ações coletivas em contato direto com cidadãos. Políticos da comunidade e líderes de associações de moradores contam com a confiança pessoal dos moradores – algo que pode ser essencial durante uma eleição para apoiar ou derrubar campanhas.

A perda de apoio dessas bases foi, em parte, responsável pela queda da votação do PT nas favelas. Para o pesquisador Ignacio Cano, “o PT ficou órfão de quadros locais” nos últimos anos. Ele explica que era fácil convencer líderes locais a fazerem campanha pelo partido com a economia indo bem, mas que essa base foi perdida com a crise econômica. Segundo Cano, a coligação de partidos e lideranças apoiando o PT no Rio se desmanchou por volta de 2016.

Salvino Oliveira, coordenador de uma plataforma de narrativas sobre as periferias, pensa de forma parecida. Para ele, forças de esquerda perderam uma conexão com muitos eleitores por volta de 2016. Além disso, ele ressalta que durante os governos petistas, lideranças do terceiro setor, de associações de moradores e de organizações de esquerda foram absorvidas para cargos no governo, mas que no poder, passaram a negligenciar a base das organizações de que vieram. Segundo Salvino, tanto as bases de esquerda quanto os eleitores no geral passaram a sentir que não se escutava mais a favela.

Ainda assim, o PT segurou muito mais votos nas favelas da Zona Sul e da região central do que na Zona Oeste. Salvino explica que, especialmente na Zona Sul do Rio, ONGs bem organizadas e com inclinação de esquerda estão diariamente em contato direto com os eleitores. Assim, conseguem indiretamente apoiar candidatos que simpatizam com as suas causas. Nas suas palavras, “as ONGs da Zona Sul, pela sua localização, sempre tiveram mais relevância e visibilidade. Recebem mais doações — depois das Olimpíadas ganharam plataformas e pautas globais”.

Já na Zona Oeste, o funcionamento desse tipo de ONG acaba restrito pelas milícias. Segundo Salvino, as milícias exercem poder em “antibiose com o Estado”, ganhando quando os serviços públicos não funcionam. “Se a energia elétrica vem por boas políticas públicas até a casa do morador, a milícia não pode cobrar taxa. Se o Estado protegesse a região, mesma coisa. É vantajoso para esses grupos paramilitares que ninguém reclame das condições, por isso restringem a atuação de ONGs. A milícia disputa o controle da miséria”.

III) Milícias

Então como as milícias afetam o voto do eleitor carioca? Para o pesquisador Ignacio Cano, esses grupos exercem considerável influência em atividades eleitorais, como a distribuição de cartazes e santinhos: “com certeza a milícia controla isso”. Outro exemplo dessas atividades está na “taxa eleitoral”, cobrada pelas milícias para que candidatos tenham permissão para fazer campanha nos seus redutos.

Para a pesquisadora Jessie Bullock, especialista na relação entre grupos criminosos e o voto no Rio de Janeiro, as milícias se adaptam melhor que o tráfico à prática de influenciar eleições: “Os grupos de tráfico têm seu negócio baseado na venda, principalmente de drogas. A logística dessa venda é de interações rápidas com o consumidor e transporte efetivo das mercadorias”. Já as milícias, segundo Bullock, têm um contato muito mais pessoal com os moradores dos seus territórios; afinal, precisam cobrar todo mês por “segurança” e serviços. Essa conexão pessoal com os moradores – componente importante da prática de extorsão – permite que os criminosos ajam mais naturalmente como cabos eleitorais. Da mesma forma, a milícia manter relações duradouras com quem ela interage tende a facilitar um bom relacionamento com certos políticos, coisa que o modus operandi furtivo do tráfico dificulta.

Ainda de acordo com Bullock, a influência das milícias é muito determinante em pleitos menores. Vereadores e deputados estaduais ligados à paramilitares ganham acesso privilegiado a algumas comunidades, facilitando suas eleições. Exemplo maior disso é Nadinho de Rio das Pedras, apontado pela CPI das Milícias em 2008 como “ex-líder” da milícia da favela de Rio das Pedras. Ele foi eleito vereador em 2004 com 75,5% dos votos da favela, e acabou assassinado em 2009. Desde então, dezenas de candidatos continuam sendo eleitos em circunstâncias similares.

Apesar de exercerem um controle perigoso sobre os pleitos minoritários nas favelas onde têm presença, as milícias não aparentam ter produzido vantagem para nenhum candidato a presidente em 2018. Usando dados do Disque Denúncia do Rio, classificamos as favelas como áreas com ou sem milícia, baseado em quantas ligações da região denunciavam cada grupo em 2016 e 2017, e houve pouca diferença em como cada área votou, quando controlamos pela quantidade de evangélicos:

As milícias são uma força importante para o cenário eleitoral do Rio: elas conseguem institucionalizar seu controle sobre certas regiões por meio de relacionamentos com políticos e interações duradouras com outras autoridades. No entanto, esse controle é limitado à política regional – ao menos por ora.


As forças que contribuíram para a derrocada do PT nas favelas do Rio em 2018 continuam relevantes. O sentimento de abandono por parte do PT continua. E é um sentimento que vai além dessas comunidades. Ecoa a frase de Mano Brown de 2018, num palanque de Fernando Haddad: “Deixou de entender o povão já era. Se nós somos o partido dos trabalhadores, partido do povo, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base, e vai procurar saber”.

Enquanto isso, os evangélicos parecem seguir com Bolsonaro. O pastor Adelson garantiu que o voto no presidente em sua comunidade não sumiu e não vai sumir: “Aqui o Bolsonaro é muito bem aceito. Não tem governabilidade porque não deixam o homem trabalhar. A gente escuta dele fazendo muitas coisas que não foram feitas nos últimos 30 anos. Tá chegando água no Nordeste, ele tá construindo estradas, ajudando o povo com o auxílio emergencial”.


Dados usados na matéria: Localização de seções eleitorais (Pindograma); Votação por seções eleitorais (Tribunal Superior Eleitoral); Localização de favelas do Rio de Janeiro (Prefeitura do Rio de Janeiro); Traçados de zonas eleitorais (Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro); Censo Demográfico 2010 (IBGE/CEM-USP); Ligações ao Disque Denúncia (Disque Denúncia/RJ, cedido pelo Volt Data Lab).

Contribuiu com dados: Daniel T. Ferreira.

Para reproduzir os números citados, o código pode ser acessado aqui.

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Francisco Ricci é fundador e repórter do Pindograma.

De Dilma a Bolsonaro: como votam as favelas do Rio

Voto evangélico e atuação de ONGs explicam diferenças no comportamento eleitoral de comunidades cariocas

POR FRANCISCO RICCI

07/09/2020

“Alô? Com quem eu falo?” Uma versão acústica de Ninguém Explica Deus toca ao fundo da chamada. “Eu poderia falar com um pastor da igreja? Estamos tentando conversar com líderes locais para entender o voto nas favelas da região”. Uma voz veio ao telefone e, finalmente, o pastor de uma igreja metodista havia se disposto a conversar com a reportagem.

“Mas as perguntas são sobre política?”

“Sim”.

E o telefone desliga.


Hoje, mais de um quinto dos cariocas moram em uma das mais de mil favelas da cidade. Essas comunidades são parte central da cultura e identidade do Brasil, mas o seu comportamento político ainda é pouco explorado. Como, afinal, votam as favelas do Rio de Janeiro?

Para responder à pergunta, o Pindograma construiu um mapa detalhado de como elas votam. Usando bases do Governo Federal e o Google Maps, a reportagem localizou cada uma das 15.861 seções eleitorais do Rio de Janeiro. Então, cruzamos essas seções com as áreas das favelas com mais de mil pessoas, segundo dados da Prefeitura do Rio, e analisamos os resultados das últimas eleições presidenciais:

Bolsonaro obteve maioria em quase todas as favelas do Rio com mais de mil residentes – o atual presidente foi vitorioso em 205 comunidades, somando 1.248.212 moradores. Enquanto isso, Haddad venceu em somente 11 favelas, somando 176.399 moradores.

No entanto, essa transição do PT para Bolsonaro não ocorreu de maneira uniforme pela cidade. Nas favelas da região central, a porcentagem de votos para o candidato do PT caiu 23%. Na Zona Norte, essa queda foi de 34%, e na Zona Oeste, de 41%. Foi somente nas favelas da Zona Sul que o voto no PT cresceu entre 2014 e 2018.

Especialistas que estudam o voto do Rio sugerem três causas para explicar essa diferença: o voto evangélico, a presença de organizações comunitárias de esquerda, e a atuação de milícias.

I) O Voto Evangélico

A importância do voto evangélico para a eleição de Jair Bolsonaro não é novidade. Segundo pesquisa Datafolha realizada a três dias do segundo turno em 2018, 56% dos brasileiros declararam voto no atual presidente; já entre os evangélicos, esse percentual foi de 69%.

O voto evangélico também explica boa parte da diferença no comportamento eleitoral entre favelas da cidade. Na Zona Oeste, os evangélicos representam 28% da população, enquanto a média da Zona Norte é de 21%, e no Centro, de 16%. Santa Cruz – bairro no extremo oeste da cidade – foi a primeira região da cidade a ter mais evangélicos que católicos, segundo o Censo de 2010.

O pastor Adelson, da Assembleia de Deus de Santa Cruz, falou ao Pindograma sobre o comportamento eleitoral dos fiéis. “Depois da crise econômica, não tem como fugir do desemprego. A população aqui foi mais afetada. A vida piorou. E quem oferece cesta básica, ajuda com moradia, emprego? A igreja. Sempre juntamos uma ajuda para um irmão que precisa. Antes, os membros da congregação, alguns apoiavam o governo do PT, outros não. Mas quase todo mundo mudou de ideia. Cansaram da roubalheira”.

Os dados confirmam as impressões do pastor. As favelas em áreas mais evangélicas da cidade não demonstraram forte oposição ao PT nas eleições de 2014. No entanto, apoiaram Bolsonaro com força em 2018:

O alinhamento do voto evangélico a determinados candidatos não é um fenômeno inédito. Em 2014, áreas do Rio com maior presença de evangélicos já votavam mais em candidatos conservadores para o Legislativo, e já davam mais votos que os católicos a Marcelo Crivella, então um pastor licenciado. Mas foi só em 2018 que o voto evangélico pesou em uma eleição presidencial.

O pesquisador Ignacio Cano, especialista em segurança pública e política do Rio de Janeiro, compartilha dessa avaliação. Segundo o pesquisador, “os eleitores evangélicos não se consolidaram no voto antipetista no passado. Nos debates presidenciais de 2014, Dilma evitava dar opinião sobre a legalização do aborto, com medo de perder parte relevante do voto evangélico. Em 2018 o Partido dos Trabalhadores já perdeu quase todo esse voto. Esse descolamento foi parte por pragmatismo, parte pela desmoralização do governo”.

Há muitas razões para a adesão dos evangélicos a Bolsonaro: o conservadorismo moral, a oposição à corrupção do PT, e o ativismo de fiéis bolsonaristas junto a suas comunidades religiosas. Para Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus que apoiou a candidatura do presidente, “o grande erro da esquerda” foi ter apoiado o “aborto, ideologia de gênero, casamento gay, liberação de drogas” – pautas que Bolsonaro opôs por toda a sua carreira.

Mas nenhum desses motivos pode ser reduzido a uma crença de que os evangélicos são meramente manipulados pelos líderes religiosos, tanto segundo especialistas, quanto segundo os próprios pastores. O pastor Adelson afirma que nunca instruiu o voto de ninguém: “Não conheço aqui nenhum pastor que faça isso. Que direcione o voto assim. Nós entendemos da Bíblia – o voto de cada fiel é pessoal e individual. Pastor que fala em quem votar deveria responder na Justiça. Na congregação, convivemos com o diferente. Por isso que chamamos o Brasil de democracia, não?”

II) Quadros Políticos Locais

Mas pastores não são as únicas pessoas que exercem influência no pensamento popular e no voto. No dia-a-dia, outras lideranças locais pensam, organizam, e promovem ações coletivas em contato direto com cidadãos. Políticos da comunidade e líderes de associações de moradores contam com a confiança pessoal dos moradores – algo que pode ser essencial durante uma eleição para apoiar ou derrubar campanhas.

A perda de apoio dessas bases foi, em parte, responsável pela queda da votação do PT nas favelas. Para o pesquisador Ignacio Cano, “o PT ficou órfão de quadros locais” nos últimos anos. Ele explica que era fácil convencer líderes locais a fazerem campanha pelo partido com a economia indo bem, mas que essa base foi perdida com a crise econômica. Segundo Cano, a coligação de partidos e lideranças apoiando o PT no Rio se desmanchou por volta de 2016.

Salvino Oliveira, coordenador de uma plataforma de narrativas sobre as periferias, pensa de forma parecida. Para ele, forças de esquerda perderam uma conexão com muitos eleitores por volta de 2016. Além disso, ele ressalta que durante os governos petistas, lideranças do terceiro setor, de associações de moradores e de organizações de esquerda foram absorvidas para cargos no governo, mas que no poder, passaram a negligenciar a base das organizações de que vieram. Segundo Salvino, tanto as bases de esquerda quanto os eleitores no geral passaram a sentir que não se escutava mais a favela.

Ainda assim, o PT segurou muito mais votos nas favelas da Zona Sul e da região central do que na Zona Oeste. Salvino explica que, especialmente na Zona Sul do Rio, ONGs bem organizadas e com inclinação de esquerda estão diariamente em contato direto com os eleitores. Assim, conseguem indiretamente apoiar candidatos que simpatizam com as suas causas. Nas suas palavras, “as ONGs da Zona Sul, pela sua localização, sempre tiveram mais relevância e visibilidade. Recebem mais doações — depois das Olimpíadas ganharam plataformas e pautas globais”.

Já na Zona Oeste, o funcionamento desse tipo de ONG acaba restrito pelas milícias. Segundo Salvino, as milícias exercem poder em “antibiose com o Estado”, ganhando quando os serviços públicos não funcionam. “Se a energia elétrica vem por boas políticas públicas até a casa do morador, a milícia não pode cobrar taxa. Se o Estado protegesse a região, mesma coisa. É vantajoso para esses grupos paramilitares que ninguém reclame das condições, por isso restringem a atuação de ONGs. A milícia disputa o controle da miséria”.

III) Milícias

Então como as milícias afetam o voto do eleitor carioca? Para o pesquisador Ignacio Cano, esses grupos exercem considerável influência em atividades eleitorais, como a distribuição de cartazes e santinhos: “com certeza a milícia controla isso”. Outro exemplo dessas atividades está na “taxa eleitoral”, cobrada pelas milícias para que candidatos tenham permissão para fazer campanha nos seus redutos.

Para a pesquisadora Jessie Bullock, especialista na relação entre grupos criminosos e o voto no Rio de Janeiro, as milícias se adaptam melhor que o tráfico à prática de influenciar eleições: “Os grupos de tráfico têm seu negócio baseado na venda, principalmente de drogas. A logística dessa venda é de interações rápidas com o consumidor e transporte efetivo das mercadorias”. Já as milícias, segundo Bullock, têm um contato muito mais pessoal com os moradores dos seus territórios; afinal, precisam cobrar todo mês por “segurança” e serviços. Essa conexão pessoal com os moradores – componente importante da prática de extorsão – permite que os criminosos ajam mais naturalmente como cabos eleitorais. Da mesma forma, a milícia manter relações duradouras com quem ela interage tende a facilitar um bom relacionamento com certos políticos, coisa que o modus operandi furtivo do tráfico dificulta.

Ainda de acordo com Bullock, a influência das milícias é muito determinante em pleitos menores. Vereadores e deputados estaduais ligados à paramilitares ganham acesso privilegiado a algumas comunidades, facilitando suas eleições. Exemplo maior disso é Nadinho de Rio das Pedras, apontado pela CPI das Milícias em 2008 como “ex-líder” da milícia da favela de Rio das Pedras. Ele foi eleito vereador em 2004 com 75,5% dos votos da favela, e acabou assassinado em 2009. Desde então, dezenas de candidatos continuam sendo eleitos em circunstâncias similares.

Apesar de exercerem um controle perigoso sobre os pleitos minoritários nas favelas onde têm presença, as milícias não aparentam ter produzido vantagem para nenhum candidato a presidente em 2018. Usando dados do Disque Denúncia do Rio, classificamos as favelas como áreas com ou sem milícia, baseado em quantas ligações da região denunciavam cada grupo em 2016 e 2017, e houve pouca diferença em como cada área votou, quando controlamos pela quantidade de evangélicos:

As milícias são uma força importante para o cenário eleitoral do Rio: elas conseguem institucionalizar seu controle sobre certas regiões por meio de relacionamentos com políticos e interações duradouras com outras autoridades. No entanto, esse controle é limitado à política regional – ao menos por ora.


As forças que contribuíram para a derrocada do PT nas favelas do Rio em 2018 continuam relevantes. O sentimento de abandono por parte do PT continua. E é um sentimento que vai além dessas comunidades. Ecoa a frase de Mano Brown de 2018, num palanque de Fernando Haddad: “Deixou de entender o povão já era. Se nós somos o partido dos trabalhadores, partido do povo, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base, e vai procurar saber”.

Enquanto isso, os evangélicos parecem seguir com Bolsonaro. O pastor Adelson garantiu que o voto no presidente em sua comunidade não sumiu e não vai sumir: “Aqui o Bolsonaro é muito bem aceito. Não tem governabilidade porque não deixam o homem trabalhar. A gente escuta dele fazendo muitas coisas que não foram feitas nos últimos 30 anos. Tá chegando água no Nordeste, ele tá construindo estradas, ajudando o povo com o auxílio emergencial”.


Dados usados na matéria: Localização de seções eleitorais (Pindograma); Votação por seções eleitorais (Tribunal Superior Eleitoral); Localização de favelas do Rio de Janeiro (Prefeitura do Rio de Janeiro); Traçados de zonas eleitorais (Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro); Censo Demográfico 2010 (IBGE/CEM-USP); Ligações ao Disque Denúncia (Disque Denúncia/RJ, cedido pelo Volt Data Lab).

Contribuiu com dados: Daniel T. Ferreira.

Para reproduzir os números citados, o código pode ser acessado aqui.

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