Lei deslocou R$ 144 milhões do transporte público e não motorizado para obras viárias em SP


Pela primeira vez desde 2013, obras viárias têm mais investimentos do Fundurb que transporte público
POR PEDRO SIEMSEN • 10/10/2021

Uma lei aprovada em 2019 pela Câmara Municipal de São Paulo redirecionou quase R$ 150 milhões, anteriormente reservados para despesas no transporte público e não motorizado, para investimentos em obras para carros.

Incentivar mobilidade que fugisse do perfil carrocêntrico da cidade era uma das prioridades do plano diretor da cidade, aprovado em 2014. No entanto, a nova legislação incluiu a “realização de melhorias nas vias estruturais” como uma das categorias de investimento para o bilionário Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano), abrindo a possibilidade de gastos em obras viárias.

Com a nova legislação, a Prefeitura passou a investir, pela primeira vez desde 2013, mais dinheiro em obras viárias do que no transporte público:

Foram privilegiadas obras de recapeamento de ruas e avenidas e a construção de novas vias, como as pontes Pirituba-Lapa e Graúna-Gaivotas. Segundo dados da Prefeitura compilados pelo Pindograma, os investimentos do Fundurb em obras viárias foram de zero em 2018 para R$ 96 milhões em 2019 e R$ 50 milhões em 2020.

O investimento em ciclovias e calçadas também aumentou, mas mantém-se abaixo dos valores investidos durante a gestão Haddad (2013-2016). As informações estão disponíveis nas prestações de contas do Fundurb.

A mudança promovida pela lei de 2019, proposta pela Prefeitura, é considerada inconstitucional tanto por membros da sociedade civil quanto por promotores do Ministério Público de São Paulo. Segundo críticos, a mudança teria ido contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que proíbe leis municipais contrárias ao Plano Diretor. Segundo os promotores, a aprovação do projeto também não teria cumprido os requisitos legais de participação popular.


O Fundurb, gerido pela prefeitura de São Paulo, é um instrumento importante para a implementação do Plano Diretor. A legislação obriga o fundo a direcionar 30% dos seus recursos à aquisição de terrenos para construção de habitação social, 30% para melhorias do transporte público e ativo e os outros 40% para outros investimentos no desenvolvimento urbano.

As resoluções que determinam a destinação dos recursos são elaboradas por um conselho gestor, que conta com membros da sociedade civil e do governo municipal.

O fundo é um dos principais financiadores do desenvolvimento urbano de São Paulo. Entre 2005 e 2013, seus recursos representaram, em média, 6,8% dos recursos investidos pela prefeitura, que possui o quinto maior orçamento do país.


Entre 2019 e 2020, aproximadamente R$ 66 milhões do Fundurb foram direcionados exclusivamente ao planejamento e construção de duas pontes: uma de ligação sobre o Rio Tietê entre Pirituba e Lapa, e outra sobre a represa Billings, na Zona Sul. Em 2021, pelo menos R$ 6 milhões já foram empenhados para continuar a ponte sobre a Billings.

Ambas as pontes são projetos antigos que poderão impactar centenas de milhares de pessoas. No entanto, usar o Fundurb para investir nelas é uma iniciativa antagônica aos princípios do Plano Diretor, cujo enfoque é o investimento público em construções que não favoreçam o carro individual.

Além das duas pontes milionárias, foram cerca de R$ 96 milhões liquidados em outras obras nos últimos dois anos. Esse dinheiro é encaminhado a iniciativas que são responsáveis pelo reparo de vias majoritariamente utilizadas por automóveis.

Parte desses recursos foi utilizada para a construção de taludes que recuperaram vias em áreas relativamente nobres da cidade, como no bairro do Panamby, na Zona Sul. Outro exemplo são os recursos direcionados à manutenção de pontes e viadutos já existentes.

“Não tem nenhuma outra razão que explique essa mudança [nos investimentos do FUNDURB]. Gastamos R$ 135 milhões em obra viária, por causa de uma lei que é ilegal”, diz Bianca Tavolari, professora de direito do Insper e pesquisadora do Cebrap.

Além disso, há complicações em algumas dessas obras: a ponte Pirituba-Lapa está com obras paralisadas há meses, após uma liminar decorrente de ação do Ministério Público estadual em razão da falta de estudos de impacto ambiental da obra.

Além de ter possibilitado uma atuação do Fundurb contrária aos princípios estabelecidos no plano diretor, a mudança pode ter sido contrária ao que é previsto no Estatuto das Cidades.

Após a aprovação da mudança, promotores de São Paulo divulgaram uma recomendação ao então prefeito Bruno Covas (PSDB) pedindo que o projeto de lei fosse vetado. De acordo com os promotores, o processo de votação e aprovação da mudança de texto na lei original do Fundurb não havia cumprido os requisitos de transparência e participação popular demandados pelo Estatuto das Cidades e pelas constituições federal e paulista.

Além disso, a mudança de texto vai diretamente contra uma decisão do STF. Em 2015, o ministro Teori Zavascki determinou que propostas de mudanças a planos diretores só podem ser aprovadas se “compatíveis com as diretrizes” dos planos originais. Mudanças mais substanciais só poderiam ser aprovadas nos períodos de revisão do plano diretor, quando há muita discussão e participação da sociedade.

Contudo, Covas ignorou os apelos sancionou o projeto. A assinatura do prefeito provocou mais uma reação da Promotoria, que reafirmou ser inconstitucional a mudança em questão. Segundo os promotores, o novo texto proposto é “extremamente genérico” e não contou com nenhuma participação popular, considerando que foi apresentado apenas 40 minutos antes da votação.

O texto inicial da lei nº 17.217 tratava de mudanças pequenas no planejamento viário e uma medida para aumentar os recursos investidos em habitação social, e foi esse texto que passou pelas consultas. Porém, a parte mais crítica, de alteração dos investimentos do Fundurb, foi adicionada posteriormente, em uma votação “submarino”.

O aumento de recursos para habitação social foi o principal tema discutido durante a votação. O projeto atraiu o apoio de uma maioria esmagadora na Câmara, além de movimentos de moradia na cidade. Ao final, todos votaram a favor da proposta, menos o vereador Fernando Holiday (então no DEM), que se absteve.

Segundo a promotora Camila Mansour, a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pedindo a anulação da mudança.


Em nota à reportagem, a Presidência da Câmara Municipal de São Paulo afirmou que o processo de votação “foi totalmente regular e observou o princípio da participação popular, com a realização de audiências públicas”.

Já a Prefeitura confirmou que R$ 144,2 milhões do Fundurb foram direcionados a obras viárias, como “reparo de pontes e viadutos, requalificação de vielas e travessas e implantação de estradas”, em “consonância com as diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor Estratégico (PDE)”.

A gestão municipal não explicou os motivos para promover a mudança da lei do Plano Diretor dois anos atrás.


Dados utilizados na matéria: Gastos do Fundurb (Prefeitura de São Paulo).

Créditos da imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil, Alexandre Pereira/Flickr.

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Pedro Siemsen é repórter do Pindograma.

Lei deslocou R$ 144 milhões do transporte público e não motorizado para obras viárias em SP

Pela primeira vez desde 2013, obras viárias têm mais investimentos do Fundurb que transporte público

POR PEDRO SIEMSEN

10/10/2021

Uma lei aprovada em 2019 pela Câmara Municipal de São Paulo redirecionou quase R$ 150 milhões, anteriormente reservados para despesas no transporte público e não motorizado, para investimentos em obras para carros.

Incentivar mobilidade que fugisse do perfil carrocêntrico da cidade era uma das prioridades do plano diretor da cidade, aprovado em 2014. No entanto, a nova legislação incluiu a “realização de melhorias nas vias estruturais” como uma das categorias de investimento para o bilionário Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano), abrindo a possibilidade de gastos em obras viárias.

Com a nova legislação, a Prefeitura passou a investir, pela primeira vez desde 2013, mais dinheiro em obras viárias do que no transporte público:

Foram privilegiadas obras de recapeamento de ruas e avenidas e a construção de novas vias, como as pontes Pirituba-Lapa e Graúna-Gaivotas. Segundo dados da Prefeitura compilados pelo Pindograma, os investimentos do Fundurb em obras viárias foram de zero em 2018 para R$ 96 milhões em 2019 e R$ 50 milhões em 2020.

O investimento em ciclovias e calçadas também aumentou, mas mantém-se abaixo dos valores investidos durante a gestão Haddad (2013-2016). As informações estão disponíveis nas prestações de contas do Fundurb.

A mudança promovida pela lei de 2019, proposta pela Prefeitura, é considerada inconstitucional tanto por membros da sociedade civil quanto por promotores do Ministério Público de São Paulo. Segundo críticos, a mudança teria ido contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que proíbe leis municipais contrárias ao Plano Diretor. Segundo os promotores, a aprovação do projeto também não teria cumprido os requisitos legais de participação popular.


O Fundurb, gerido pela prefeitura de São Paulo, é um instrumento importante para a implementação do Plano Diretor. A legislação obriga o fundo a direcionar 30% dos seus recursos à aquisição de terrenos para construção de habitação social, 30% para melhorias do transporte público e ativo e os outros 40% para outros investimentos no desenvolvimento urbano.

As resoluções que determinam a destinação dos recursos são elaboradas por um conselho gestor, que conta com membros da sociedade civil e do governo municipal.

O fundo é um dos principais financiadores do desenvolvimento urbano de São Paulo. Entre 2005 e 2013, seus recursos representaram, em média, 6,8% dos recursos investidos pela prefeitura, que possui o quinto maior orçamento do país.


Entre 2019 e 2020, aproximadamente R$ 66 milhões do Fundurb foram direcionados exclusivamente ao planejamento e construção de duas pontes: uma de ligação sobre o Rio Tietê entre Pirituba e Lapa, e outra sobre a represa Billings, na Zona Sul. Em 2021, pelo menos R$ 6 milhões já foram empenhados para continuar a ponte sobre a Billings.

Ambas as pontes são projetos antigos que poderão impactar centenas de milhares de pessoas. No entanto, usar o Fundurb para investir nelas é uma iniciativa antagônica aos princípios do Plano Diretor, cujo enfoque é o investimento público em construções que não favoreçam o carro individual.

Além das duas pontes milionárias, foram cerca de R$ 96 milhões liquidados em outras obras nos últimos dois anos. Esse dinheiro é encaminhado a iniciativas que são responsáveis pelo reparo de vias majoritariamente utilizadas por automóveis.

Parte desses recursos foi utilizada para a construção de taludes que recuperaram vias em áreas relativamente nobres da cidade, como no bairro do Panamby, na Zona Sul. Outro exemplo são os recursos direcionados à manutenção de pontes e viadutos já existentes.

“Não tem nenhuma outra razão que explique essa mudança [nos investimentos do FUNDURB]. Gastamos R$ 135 milhões em obra viária, por causa de uma lei que é ilegal”, diz Bianca Tavolari, professora de direito do Insper e pesquisadora do Cebrap.

Além disso, há complicações em algumas dessas obras: a ponte Pirituba-Lapa está com obras paralisadas há meses, após uma liminar decorrente de ação do Ministério Público estadual em razão da falta de estudos de impacto ambiental da obra.

Além de ter possibilitado uma atuação do Fundurb contrária aos princípios estabelecidos no plano diretor, a mudança pode ter sido contrária ao que é previsto no Estatuto das Cidades.

Após a aprovação da mudança, promotores de São Paulo divulgaram uma recomendação ao então prefeito Bruno Covas (PSDB) pedindo que o projeto de lei fosse vetado. De acordo com os promotores, o processo de votação e aprovação da mudança de texto na lei original do Fundurb não havia cumprido os requisitos de transparência e participação popular demandados pelo Estatuto das Cidades e pelas constituições federal e paulista.

Além disso, a mudança de texto vai diretamente contra uma decisão do STF. Em 2015, o ministro Teori Zavascki determinou que propostas de mudanças a planos diretores só podem ser aprovadas se “compatíveis com as diretrizes” dos planos originais. Mudanças mais substanciais só poderiam ser aprovadas nos períodos de revisão do plano diretor, quando há muita discussão e participação da sociedade.

Contudo, Covas ignorou os apelos sancionou o projeto. A assinatura do prefeito provocou mais uma reação da Promotoria, que reafirmou ser inconstitucional a mudança em questão. Segundo os promotores, o novo texto proposto é “extremamente genérico” e não contou com nenhuma participação popular, considerando que foi apresentado apenas 40 minutos antes da votação.

O texto inicial da lei nº 17.217 tratava de mudanças pequenas no planejamento viário e uma medida para aumentar os recursos investidos em habitação social, e foi esse texto que passou pelas consultas. Porém, a parte mais crítica, de alteração dos investimentos do Fundurb, foi adicionada posteriormente, em uma votação “submarino”.

O aumento de recursos para habitação social foi o principal tema discutido durante a votação. O projeto atraiu o apoio de uma maioria esmagadora na Câmara, além de movimentos de moradia na cidade. Ao final, todos votaram a favor da proposta, menos o vereador Fernando Holiday (então no DEM), que se absteve.

Segundo a promotora Camila Mansour, a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pedindo a anulação da mudança.


Em nota à reportagem, a Presidência da Câmara Municipal de São Paulo afirmou que o processo de votação “foi totalmente regular e observou o princípio da participação popular, com a realização de audiências públicas”.

Já a Prefeitura confirmou que R$ 144,2 milhões do Fundurb foram direcionados a obras viárias, como “reparo de pontes e viadutos, requalificação de vielas e travessas e implantação de estradas”, em “consonância com as diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor Estratégico (PDE)”.

A gestão municipal não explicou os motivos para promover a mudança da lei do Plano Diretor dois anos atrás.


Dados utilizados na matéria: Gastos do Fundurb (Prefeitura de São Paulo).

Créditos da imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil, Alexandre Pereira/Flickr.

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