A reativação da direita no Brasil: uma conversa com André Singer


Cientista político fala sobre conservadorismo popular, eleições de 2022 e o 'quantitativismo' nas ciências sociais
POR PEDRO SIEMSEN E DANIEL FERREIRA • 13/05/2021

André Singer é professor de Ciência Política na USP e coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), ligado à universidade. Para além da academia, Singer também foi jornalista e trabalhou como porta-voz da Presidência durante o governo Lula.

Depois de sair do governo, escreveu Os sentidos do lulismo (2012) e O lulismo em crise (2018), livros que buscavam interpretar a ascensão e queda dos governos petistas. Mais recentemente, escreveu o artigo “A Reativação da Direita no Brasil”, no qual tenta compreender a eleição de Bolsonaro em 2018.

Singer argumenta que o eleitorado brasileiro sempre teve uma preferência pela ideologia de direita, embora ela nem sempre se manifestasse na hora do voto. Segundo o professor, Bolsonaro teria sido bem-sucedido ao “reativar” esse direitismo e ao convencer o eleitor a expressá-lo na urna.

O Pindograma conversou com Singer sobre o conservadorismo popular na sociedade brasileira e as possibilidades de mudá-lo, sobre as tendências da ciência política nos dias de hoje e sobre as chances de um candidato de centro nas eleições de 2022. Singer também refletiu sobre o impacto que sua experiência no jornalismo e no governo Lula tiveram sobre a sua produção acadêmica.


Pindograma: No seu último artigo, você demonstra, através de pesquisas de opinião, que o eleitorado de direita predominou no Brasil durante os últimos 30 anos. Uma das razões para essa predominância seria a existência de um “conservadorismo popular”. Você pode explicar um pouco melhor como você vê esse conservadorismo popular? O que ele é, exatamente?

Singer: Para responder a pergunta, eu quero contextualizar o artigo. Ele avalia a divisão do eleitorado brasileiro nas categorias de esquerda e direita por um período de 30 anos.

Por que essa análise é pouco comum no Brasil? Um dos motivos é que uma parte dos analistas acha que essas categorias não funcionam no Brasil. Eles acham que, de modo geral, o eleitorado brasileiro tem pouco conhecimento do significado de “esquerda” e “direita”. Mas eu acredito que esses termos têm alguma relevância pra compreender o eleitorado brasileiro, desde que você faça as devidas mediações.

Uma das mediações aqui, no meu caso específico, é que eu reconheço que uma boa parte dos eleitores, quando perguntados o significado de esquerda e direita, têm dificuldade pra verbalizar [o significado desses termos]. Então, eu recorri a uma ideia que tá na literatura, em geral norte-americana, de intuição ideológica, que é uma visão segundo a qual os eleitores não sabem muito bem explicar o que é a esquerda e a direita, mas têm uma noção intuitiva do que seja esquerda e direita porque eles ouvem isso na discussão política corrente.

Se você pedir pros eleitores brasileiros colocarem políticos e partidos numa escala esquerda-direita, você nunca vai ver, por exemplo, o Lula à direita do Bolsonaro. Se as pessoas sabem que o Lula está à esquerda do Bolsonaro, é porque elas têm uma certa noção muito vaga. Elas têm dificuldade pra expressar verbalmente, mas há uma noção do que é esquerda e direita, ou pelo menos onde está cada uma das pessoas e dos partidos. É claro que isso não se aplica ao conjunto inteiro, mas, talvez, se aplique a 70%-75% do eleitorado, o que é muito.

Isto posto, a série de dados que eu apresento no artigo mostra que, ao longo de trinta anos, sempre é a posição à direita que reúne o maior número relativo de eleitores. Cerca de trinta por cento. Se minha hipótese de intuição ideológica não estivesse correta, esses resultados não aconteceriam. Se as pessoas não tivessem a menor ideia do que é esquerda e direita e respondessem isso de maneira completamente arbitrária, a série histórica seria muito mais abrupta. Mas ela é bastante estável.

Autolocalização em campos ideológicos (Datafolha), via André Singer

Bom, é a partir daí que eu digo que, potencialmente, sempre existe um eleitorado que se inclina pra direita no Brasil. E é claro que tem que ter uma parte [desses eleitores] que seja das camadas populares. Então aí há uma constatação de que existe um fenômeno, que a literatura já localizou há muito tempo, pelo menos desde os anos 80, do tal conservadorismo popular — ou seja, pessoas que fazem parte das camadas populares, mas têm o viés conservador.

Existem muito poucas pesquisas sobre o que seria esse conservadorismo popular. Eu justamente assinalo no artigo que esse é o tema que deveria ser muito pesquisado agora, para saber exatamente do que consiste esse tipo de conservadorismo.

Eu formularia uma hipótese que tem a ver com duas coisas. Uma delas diz respeito a eleitores que, embora pertençam às camadas populares, têm uma renda que as coloca mais próximas do que seria a “classe C”.

Esses eleitores vivem perto da periferia das grandes cidades, mas não propriamente na última periferia. E justamente por estarem perto dessa periferia mais distante, têm uma relação muito tensa com aqueles que a gente poderia chamar genericamente de “os pobres”. Isso está na literatura, por exemplo, no trabalho do Flávio Pierucci.

Ao mesmo tempo, esses eleitores [próximos da “classe C”] têm uma relação bastante tensa com a classe média que mora nos bairros tradicionais das grandes cidades. Porque é como se estivessem entre dois fogos. De um lado, não querem ser confundidos com os moradores da última periferia e não querem cair naquela situação. Por outro lado, há muito ressentimento em relação àqueles que pertencem aos bairros de classe média tradicional. Essa é uma configuração que tende ao que a gente poderia chamar de conservadorismo popular.

Por outro lado, eu acho que setores muito vulneráveis também podem tender a um certo conservadorismo, justamente em função da sua vulnerabilidade. Por quê? Setores muito vulneráveis temem qualquer tipo de turbulência e buscam, naturalmente, uma espécie de proteção que venha de cima.

Fora isso, eu acho que é um assunto que está em aberto para ser pesquisado.


Pindograma: No seu artigo, você faz questão de diferenciar essa direita “perene”, que há 30 anos se coloca como tal, do movimento da “nova direita” — evangélica, armamentista etc. Em que medida você acha que esses dois campos interagem?

Singer: Eu acho que essa nova direita provavelmente não é tão nova assim.

Dois componentes importantes do que pode ser esse conservadorismo popular aparecem. Um é esse segmento evangélico. As confissões evangélicas pentecostais e neopentecostais estão crescendo desde os anos sessenta. Eu acho que é um fenômeno pós-ditadura. Talvez o movimento de crescimento dos evangélicos não tenha ficado tão visível, mas ele foi crescendo e ficou mais claro nos anos oitenta e emergiu na política em 88 durante a constituinte. Ali ficou muito claro que já havia uma bancada de natureza evangélica com posições conservadoras.

Agora parece que, de repente, o Bolsonaro amalgamou uma parte considerável dos evangélicos numa posição bastante conservadora. Mas é algo que se esperava desde lá de trás, pelas próprias características da religião.

Então, eu acho que não é um fenômeno novo. O que temos de novo é que foi encontrada uma expressão política unificada que essa parte dos evangélicos não tinha antes. Se ela vai se manter unificada, eu não sei.

O outro lado da questão que você mencionou é que nós temos um problema crônico de segurança no Brasil. Que também é algo que vem do pós-1964. Nesses anos o Estado deixou regiões periféricas das cidades desguarnecidas em todos os seus aspectos, especialmente na segurança.

Esses espaços foram sendo ocupados por organizações não-estatais ou paraestatais. Esse é um outro setor que também puxa para uma coisa muito conservadora, porque, nesses espaços, é o reino da força. É onde prevalecem as relações de força e não as relações de convencimento. Portanto, são áreas muito tendentes a posições de tipo autoritário, pela própria natureza da sua inserção [na sociedade].

E, novamente, o que aconteceu? Tal como as confissões evangélicas estavam crescendo, isso também estava crescendo. E já havia também expressões políticas aqui e ali, que refletiam esse processo. Mas, de repente, o Bolsonaro amalgamou tudo isso em torno dele. Tal como aconteceu no segmento evangélico, isso veio à tona de uma maneira relativamente explosiva, embora a gente soubesse que estava se acumulando há muito tempo, até porque se não tivesse, não teria a força que tem.

Então isso também deve fazer parte de um complexo de conservadorismo popular. Porque veja, você tem milhões de pessoas envolvidas com essas atividades no Brasil. É uma parte da sociedade brasileira que faz todo sentido imaginar que funcione como um elo desse conservadorismo popular.

O que eu estou dizendo é: são segmentos de direita que foram decantando ao longo dos anos, não apareciam como tais e agora apareceram na política. E nós não sabemos como é que isto vai evoluir a partir de agora. Como são segmentos importantes da sociedade, a minha tendência é dizer isto, de alguma maneira, tanto quanto outro, veio pra ficar e tem a ver com esse conservadorismo popular.

Se o Bolsonaro será capaz de seguir sendo porta-voz político dessas pessoas, eu não sei. O Bolsonaro é um político ainda em fase de teste. Ele tem uma carreira política muito antiga, mas que nunca foi expressiva. A partir de 2016 ele começa a se projetar e, de uma maneira meteórica, chega à Presidência da República sem ter nada consolidado. Então ele teria que consolidar essa base agora para manter esse lugar de porta-voz.

Até aqui tem um elemento que fala contra isso, que é o fato de o Bolsonaro não ter criado o seu partido político, além de ter se desfiliado do partido em que ele estava. Ele poderia ter fortalecido o PSL, poderia ter criado um novo partido, é o que se esperaria de uma liderança que tem uma perspectiva histórica, ou seja, que veio e que não quer sair do cenário. Isso não aconteceu.

Claro, é possível que as bases do Bolsonaro acabem se organizando de outra forma, em outros partidos — não sei. Eu não diria hoje que já existe um “bolsonarismo”. Existe o Bolsonaro que, sem dúvida, é uma liderança importante. Mas, se ele vai se consolidar como uma liderança com futuro e uma base estruturada, não sabemos.

Mas como vai ficar é justamente a pergunta difícil de responder. O Bolsonaro ainda é um personagem in the making.


Pindograma: No seu artigo, você fala do conservadorismo popular como um fenômeno de longo prazo. E agora, você afirmou que os evangélicos vêm crescendo desde 1960 e que as questões de segurança vêm desde o pós-1964. Dado que essas forças conservadoras estavam, como você diz, decantando na sociedade brasileira por tanto tempo, foi só uma questão do acaso não ter surgido alguém como o Bolsonaro antes? Ou teve algo em particular em 2018 que levou a isso?

Singer: Eu acho que faz parte de um movimento cíclico da política brasileira. Eu falo de cíclico pelo seguinte motivo: ele se deu em 1964 e ele volta a se dar em 2018. Tanto em um caso quanto no outro, a direita brasileira ia lá, arrastando junto com ela setores importantes do centro.

A questão democrática do Brasil é a seguinte: as forças precisam se alternar [no poder]. Só que quando você consolida um campo popular, é muito difícil que o que eu chamo de “classe média” ganhe a eleição, porque o Brasil é tão desigual.

Em 2014, o PSDB, [partido da “classe média”], quase ganhou, faltou pouco. Eu acho que entra aqui um pouco daquela margem de ação que os homens têm, porque eles podiam ter esperado. Eles poderiam ter esperado a eleição de 2018, mas eles não quiseram esperar, com medo de que viesse o Lula.

E aí, eles cederam. Ao final de 2014, depois da reeleição da Dilma, o PSDB cedeu a uma pressão que estava vindo da direita, que era uma pressão golpista parecida com a de 1964, só que não de golpe militar. No caso de 2018, o que está por trás é o golpe parlamentar de 2016. Essa é uma espécie de levante de direita, onde todas essas coisas que estavam enrustidas emergem.


Pindograma: O casamento gay é muito mais aceito hoje do que era há dez, vinte anos. É um exemplo de uma atitude onde a sociedade brasileira era muito conservadora, mas houve uma mudança. Já em temas como o aborto isso não aconteceu. Levantamos esses exemplos pra perguntar: é possível tentar mudar esse conservadorismo popular de alguma forma? Ou a esquerda brasileira sempre vai ter que buscar desativar essas tendências e focar nos aspectos econômicos para se eleger?

Singer: Nada é eterno, nada é definitivo, né? Não só existem vias para mudar, como provavelmente vai mudar com o tempo. As coisas mudam. O problema é que ideologia é o que os cientistas políticos chamam de fator de longo prazo.

Quais são as vias de mudança? Temos que considerar em que medida a sociedade muda. Você mencionou que hoje a sociedade brasileira é mais aberta ao casamento gay do que era o passado. Eu concordo. Eu só não diria que é a sociedade toda [que está mais aberta], mas sim certos segmentos na sociedade. Porque em algumas dimensões, a sociedade brasileira mudou.

Por exemplo, aumentou muito a escolaridade, apesar dos déficits de qualidade que a escolarização brasileira tem. Isso faz diferença. Por mais que tenha problema de analfabetismo funcional, a quantidade de brasileiros que sabem ler e escrever aumentou muito. Essas são transformações importantes na sociedade. Temos que olhar esses fatores para entender a questão da ideologia, em que direção vai a sociedade brasileira.

Por outro lado, você tem sim a possibilidade que o ponto de vista de determinados segmentos se altere através de ações deliberadas de segmentos políticos com o passar do tempo. Aí entra uma discussão mais complicada, porque ela envolve problemas de conjuntura como aconteceu em 2016, 2018, em que houve uma radicalização à direita. Evidentemente, fica mais difícil nesse contexto.

Mas, também há problemas de uma ordem mais estrutural. Como é que a esquerda brasileira vai apresentar o seu projeto e, sobretudo, como que ela vai definir o seu projeto para o Brasil, para uma sociedade com essas características? O Brasil é um país que apostou fortemente na industrialização, corretamente na minha opinião, entre 1930 e 1980. Mas hoje as possibilidades de industrialização são muito limitadas. Para países periféricos como o nosso, que tipo de projeto a esquerda deve apresentar para sociedade brasileira, nessas condições?

Não é fácil. Então, eu acho que sim, há possibilidade de mudança. Mas vai depender de uma série de fatores que precisam ser analisados e combinados.


Pindograma: Você olha para os fenômenos da sociedade brasileira de uma maneira bem ampla e histórica. Tem até um trecho, no seu livro Os sentidos do lulismo, onde você evoca a tradição uspiana dos anos sessenta. Isso é uma coisa que vem ficando cada vez mais incomum na na ciência política de hoje, que é muito centrada em conjuntos de dados relativamente limitados, que são interpretados com técnicas estatísticas chiques. Essas técnicas nos permitem tirar conclusões mais sólidas, mas geralmente, de menor escopo. Como você vê essas duas tendências das ciências sociais dialogando — ou não — para entender o que está acontecendo na sociedade brasileira?

Singer: É, eu acho que a gente reproduz uma tendência mundial. Há uma espécie de cientifização das ciências sociais, no mau sentido da palavra. Um excesso de quantitativismo. Eu não sou muito negativo sobre isso, porque acho que os números são fundamentais e podem trazer muito conhecimento. O problema é quando há uma espécie de focalização excessiva nos números e na estatística.

Porém, continuam havendo espaços em que se fazem análises histórico-estruturais, com outros tipos de abordagem, nas quais a inspiração no Marx — que foi um pouco que a escola paulista de sociologia fez nos anos sessenta — continua produzindo bons resultados. Não que os problemas estejam resolvidos, e provavelmente nunca vão estar, mas eu vejo que há produção de trabalhos que ajudam a compreender o processo social mais amplo, relacionando economia, sociedade, política e às vezes até mesmo psicanálise, como foi o caso da Escola de Frankfurt e os trabalhos inspirados por ela.

Citaria aqui, por exemplo, um autor que não é marxista mas que usa o Marx quando é necessário, que é o Wolfgang Streeck, um sociólogo alemão. Ele produziu uma análise das consequências da crise de 2008 que parece muito boa no sentido de relacionar essas três dimensões: economia, sociedade e política. Só para dar um exemplo de trabalhos que eu acho que são bons nesse sentido e obviamente usam dados, mas de uma maneira contextualizada.


Pindograma: Na sua trajetória pessoal, você viu de tudo um pouco: tanto no jornalismo, quanto na política e agora na academia. Como você viu cada um desses mundos? E particularmente, como foi a transição do governo Lula de volta a academia?

Singer: É, eu de fato fiz uma trajetória até certo ponto eclética. Eu passei os primeiros dez anos, depois de formado em ciências sociais, fazendo jornalismo na ECA e trabalhando na Folha como jornalista. Aquilo me absorveu muito. E como eu falo naquele posfácio dos Sentidos do lulismo, aquela experiência foi fundamental porque, talvez por características minhas, eu precisava muito entrar em contato com o dado concreto.

Eu não consigo pensar de maneira apenas abstrata. Eu sei e acho que a abstração é absolutamente necessária se você quiser fazer uma interpretação mais profunda dos acontecimentos, mas eu tenho absoluta necessidade, como dizia o Marx, de partir do concreto. Eu não consigo vir da abstração para o concreto. Nem sei se é bom, mas mesmo que não fosse eu não conseguiria.

Então, esse mergulho na na realidade através do jornalismo foi muito importante pra mim. E durante a minha experiência no governo, eu tive o privilégio de poder ver a política funcionando de fato. Quando eu escrevo, hoje em dia, tenho sempre na minha cabeça aquilo que eu pude observar.

Claro que os personagens já mudaram, as situações mudaram, não são a mesma coisa. Tem até áreas que eu não tive nenhum contato, como os militares. Então, eu não sei como funciona. E justamente por isso, agora, nos últimos anos, onde me vejo confrontado com problemas que dizem respeito aos militares, eu percebo que não sei como abordar o problema, porque não tenho esse ponto de partida do que pra mim é fundamental.

Durante esses anos, eu não pratiquei a teoria, mas eu tive esse privilégio de poder me aproximar do empírico. Então quando eu voltei do governo, tinha elaborado algumas ideias sobre o que eu depois chamei de lulismo, na minha cabeça. Isso ainda era algo empírico e intuitivo. Mas eu estava com muita vontade de tentar transformar isso numa interpretação, e eu acho que consegui.

Do ponto de vista prático eu tive que me reacostumar com tudo [quando voltei à USP]. A rotina é muito diferente: eu estava enferrujado para dar aulas e [para arcar] com tudo que representa esse dia a dia do professor. A outra coisa é que a vida universitária é muito mais sedentária e mais isolada, em certo sentido, do que o jornalismo, que é muito vivo e tem muita adrenalina.

Como todo ser humano, tive que reaprender ali. No caso, de maneira até um pouco mais radical. Percebi que se eu não fizesse um mergulho… Era o último apito do bonde, por causa da minha idade, pra fazer alguma coisa que queria muito fazer. Então, tomei a decisão de me afastar completamente do jornalismo. Foi a primeira vez que fiz isso.

Tanto é que até hoje eu recebo convites pra participar de [conferências de] jornalismo. Eu falo: “olha, gente, eu não tenho mais condição, tô completamente afastado, não sei mais nada, não conheço mais ninguém, não sei como funciona”. Eu perdi todo esse negócio da internet, que entrou pra valer. Não sei como é o jornalismo hoje. Mas, enfim, valeu a pena.


Pindograma: Pensando em 2022, você acha que vai ter alguma candidatura de centro que vai conseguir atrair uma parte significativa do eleitorado? Ou as ideologias estão tão ativadas na sociedade que não há chance nenhuma para um candidato mais ao centro?

Singer: Essa resposta tem que ser dada em duas partes. A primeira é uma resposta mais teórica e depois tem um problema, vamos dizer, prático.

A resposta teórica é que haveria espaço. Aproveito para chamar atenção para a sequência de dados do Datafolha, que mostra um crescimento do centro a partir de 2016. É um crescimento grande e difícil de explicar. Eu fiquei pensando durante muito tempo na época em que estava escrevendo artigo e não consegui achar uma explicação pra isso.

Havia uma polarização entre esquerda e direita, mas de repente o centro sobe uns 10 pontos, é muita coisa. Eu não sei explicar. Eu diria que há um espaço ao centro; é nítido isso. Quando a gente olha os dados, há um eleitorado que não tá nem de um lado nem de outro. Maior ou menor, ele existe, ele é significativo. Então, teoricamente a minha resposta é sim, haveria espaço.

Agora, falando em termos práticos, o problema é que não surgiu nenhum candidato pra ocupar esse espaço. Simplesmente não surgiu. A teoria só propõe os elementos, certo? Mas se a coisa não funciona na prática, ela não funciona. E, até agora, nenhum candidato emplacou.

Tem o Luciano Huck, mas ele tá há tempo demais, dizendo que vai, não vai. Tudo isso tem um limite, porque o candidato tem que ir à luta, não tem jeito. A minha experiência de acompanhar muito tempo a política, mostra que candidato não sai assim sozinho. Ele pode ter uma base, mas depois ele tem que ir, tem que buscar o eleitor e as alianças ativamente. Se não, não tem chance de sucesso. Não conheço nenhum caso de um candidato que se faz em casa e pronto.

O Ciro parece estar tentando um movimento pra ocupar esse espaço, mas ele tem uma trajetória longa e eu acho que ele tende a criar muitas arestas. Então, eu vejo dificuldades aí. Há outros candidatos possíveis que nem estão sendo muito mencionados, como é o caso da Marina Silva. Por exemplo, a Marina Silva seria uma candidata, mas na minha opinião, ela é menos ativa do que ela precisaria ser pra se fixar como uma opção real para o eleitorado.

Há o governador de São Paulo, João Dória. São Paulo é um estado importante, mas ele tem dificuldades no resto do Brasil. Ele foi muito bem num certo momento com a questão da vacina, mas depois a situação não ficou tão boa assim em São Paulo, estado muito castigado pela pandemia. Eu acho que também pra ele não tá muito fácil.

Teoricamente haveria sim o espaço, mas um candidato que consiga galvanizar [o voto] dentro desse espaço não se apresentou até aqui.


Pindograma: Algumas das lideranças de centro que vêm surgindo na política, como os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP), têm muito essa coisa do discurso de priorizar as políticas públicas baseadas em evidências.

Singer: Eu acho que sim, essa preocupação é associada ao centro. É uma posição que tende a neutralizar conflitos, no sentido de subsumi-los a uma razão técnica que seria superior aos próprios conflitos. O político de centro poderia propor um equilíbrio que não seria nem muito pra lá, nem muito pra cá.

Agora, na realidade, qualquer segmento político mais racional, seja de esquerda ou de direita, tende a usar os elementos técnicos da mesma maneira. Não tem grande diferença. Desde que se queira fazer um governo racional, não é possível governar se não houver instrumentos, se você não tiver base de conhecimento. Governar não é uma coisa intuitiva.

Você pode ver isso na medida em que, tanto no governo Fernando Henrique quanto nos governos Lula e Dilma, havia equipes técnicas sérias. Propuseram algumas soluções divergentes e outras convergentes, mas no final havia uma racionalidade por trás das decisões. Então eu não acho que esquerda e direita tenham grande diferença nisso.

O que a gente tá observando agora é esse fenômeno novo e importante da extrema-direita, que joga com elementos que são muito próprios. É um certo gosto pela irracionalidade, justamente porque é o que não é dominante, é uma espécie de anti-establishment. Isso cria uma grande confusão, porque muda todos os parâmetros. Analistas se perdem, porque estão sempre lidando com esses parâmetros que envolvem algum tipo de conhecimento técnico racional e, de repente, começa a ter uma política que não obedece mais a esses parâmetros.


Pindograma: Para concluir, qual é sua estatística favorita?

Singer: Não vou fugir do teor da entrevista. O que mais me encanta é justamente essa estatística que mostra a relação entre posicionamento ideológico e voto, que acabou sendo de novo muito poderosa. Nem fui eu que fiz o cálculo, foi o Oswaldo Amaral, colega da Unicamp. Ela foi muito poderosa na eleição de 2018.

Eu não tenho tanto encantamento com estatística em si, mas enfim, já que você perguntou, é essa.


Créditos da imagem: Marcos Santos/USP Imagens.

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Pedro Siemsen é repórter do Pindograma.

Daniel Ferreira é editor do Pindograma.

A reativação da direita no Brasil: uma conversa com André Singer

Cientista político fala sobre conservadorismo popular, eleições de 2022 e o 'quantitativismo' nas ciências sociais

POR PEDRO SIEMSEN E DANIEL FERREIRA

13/05/2021

André Singer é professor de Ciência Política na USP e coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), ligado à universidade. Para além da academia, Singer também foi jornalista e trabalhou como porta-voz da Presidência durante o governo Lula.

Depois de sair do governo, escreveu Os sentidos do lulismo (2012) e O lulismo em crise (2018), livros que buscavam interpretar a ascensão e queda dos governos petistas. Mais recentemente, escreveu o artigo “A Reativação da Direita no Brasil”, no qual tenta compreender a eleição de Bolsonaro em 2018.

Singer argumenta que o eleitorado brasileiro sempre teve uma preferência pela ideologia de direita, embora ela nem sempre se manifestasse na hora do voto. Segundo o professor, Bolsonaro teria sido bem-sucedido ao “reativar” esse direitismo e ao convencer o eleitor a expressá-lo na urna.

O Pindograma conversou com Singer sobre o conservadorismo popular na sociedade brasileira e as possibilidades de mudá-lo, sobre as tendências da ciência política nos dias de hoje e sobre as chances de um candidato de centro nas eleições de 2022. Singer também refletiu sobre o impacto que sua experiência no jornalismo e no governo Lula tiveram sobre a sua produção acadêmica.


Pindograma: No seu último artigo, você demonstra, através de pesquisas de opinião, que o eleitorado de direita predominou no Brasil durante os últimos 30 anos. Uma das razões para essa predominância seria a existência de um “conservadorismo popular”. Você pode explicar um pouco melhor como você vê esse conservadorismo popular? O que ele é, exatamente?

Singer: Para responder a pergunta, eu quero contextualizar o artigo. Ele avalia a divisão do eleitorado brasileiro nas categorias de esquerda e direita por um período de 30 anos.

Por que essa análise é pouco comum no Brasil? Um dos motivos é que uma parte dos analistas acha que essas categorias não funcionam no Brasil. Eles acham que, de modo geral, o eleitorado brasileiro tem pouco conhecimento do significado de “esquerda” e “direita”. Mas eu acredito que esses termos têm alguma relevância pra compreender o eleitorado brasileiro, desde que você faça as devidas mediações.

Uma das mediações aqui, no meu caso específico, é que eu reconheço que uma boa parte dos eleitores, quando perguntados o significado de esquerda e direita, têm dificuldade pra verbalizar [o significado desses termos]. Então, eu recorri a uma ideia que tá na literatura, em geral norte-americana, de intuição ideológica, que é uma visão segundo a qual os eleitores não sabem muito bem explicar o que é a esquerda e a direita, mas têm uma noção intuitiva do que seja esquerda e direita porque eles ouvem isso na discussão política corrente.

Se você pedir pros eleitores brasileiros colocarem políticos e partidos numa escala esquerda-direita, você nunca vai ver, por exemplo, o Lula à direita do Bolsonaro. Se as pessoas sabem que o Lula está à esquerda do Bolsonaro, é porque elas têm uma certa noção muito vaga. Elas têm dificuldade pra expressar verbalmente, mas há uma noção do que é esquerda e direita, ou pelo menos onde está cada uma das pessoas e dos partidos. É claro que isso não se aplica ao conjunto inteiro, mas, talvez, se aplique a 70%-75% do eleitorado, o que é muito.

Isto posto, a série de dados que eu apresento no artigo mostra que, ao longo de trinta anos, sempre é a posição à direita que reúne o maior número relativo de eleitores. Cerca de trinta por cento. Se minha hipótese de intuição ideológica não estivesse correta, esses resultados não aconteceriam. Se as pessoas não tivessem a menor ideia do que é esquerda e direita e respondessem isso de maneira completamente arbitrária, a série histórica seria muito mais abrupta. Mas ela é bastante estável.

Autolocalização em campos ideológicos (Datafolha), via André Singer

Bom, é a partir daí que eu digo que, potencialmente, sempre existe um eleitorado que se inclina pra direita no Brasil. E é claro que tem que ter uma parte [desses eleitores] que seja das camadas populares. Então aí há uma constatação de que existe um fenômeno, que a literatura já localizou há muito tempo, pelo menos desde os anos 80, do tal conservadorismo popular — ou seja, pessoas que fazem parte das camadas populares, mas têm o viés conservador.

Existem muito poucas pesquisas sobre o que seria esse conservadorismo popular. Eu justamente assinalo no artigo que esse é o tema que deveria ser muito pesquisado agora, para saber exatamente do que consiste esse tipo de conservadorismo.

Eu formularia uma hipótese que tem a ver com duas coisas. Uma delas diz respeito a eleitores que, embora pertençam às camadas populares, têm uma renda que as coloca mais próximas do que seria a “classe C”.

Esses eleitores vivem perto da periferia das grandes cidades, mas não propriamente na última periferia. E justamente por estarem perto dessa periferia mais distante, têm uma relação muito tensa com aqueles que a gente poderia chamar genericamente de “os pobres”. Isso está na literatura, por exemplo, no trabalho do Flávio Pierucci.

Ao mesmo tempo, esses eleitores [próximos da “classe C”] têm uma relação bastante tensa com a classe média que mora nos bairros tradicionais das grandes cidades. Porque é como se estivessem entre dois fogos. De um lado, não querem ser confundidos com os moradores da última periferia e não querem cair naquela situação. Por outro lado, há muito ressentimento em relação àqueles que pertencem aos bairros de classe média tradicional. Essa é uma configuração que tende ao que a gente poderia chamar de conservadorismo popular.

Por outro lado, eu acho que setores muito vulneráveis também podem tender a um certo conservadorismo, justamente em função da sua vulnerabilidade. Por quê? Setores muito vulneráveis temem qualquer tipo de turbulência e buscam, naturalmente, uma espécie de proteção que venha de cima.

Fora isso, eu acho que é um assunto que está em aberto para ser pesquisado.


Pindograma: No seu artigo, você faz questão de diferenciar essa direita “perene”, que há 30 anos se coloca como tal, do movimento da “nova direita” — evangélica, armamentista etc. Em que medida você acha que esses dois campos interagem?

Singer: Eu acho que essa nova direita provavelmente não é tão nova assim.

Dois componentes importantes do que pode ser esse conservadorismo popular aparecem. Um é esse segmento evangélico. As confissões evangélicas pentecostais e neopentecostais estão crescendo desde os anos sessenta. Eu acho que é um fenômeno pós-ditadura. Talvez o movimento de crescimento dos evangélicos não tenha ficado tão visível, mas ele foi crescendo e ficou mais claro nos anos oitenta e emergiu na política em 88 durante a constituinte. Ali ficou muito claro que já havia uma bancada de natureza evangélica com posições conservadoras.

Agora parece que, de repente, o Bolsonaro amalgamou uma parte considerável dos evangélicos numa posição bastante conservadora. Mas é algo que se esperava desde lá de trás, pelas próprias características da religião.

Então, eu acho que não é um fenômeno novo. O que temos de novo é que foi encontrada uma expressão política unificada que essa parte dos evangélicos não tinha antes. Se ela vai se manter unificada, eu não sei.

O outro lado da questão que você mencionou é que nós temos um problema crônico de segurança no Brasil. Que também é algo que vem do pós-1964. Nesses anos o Estado deixou regiões periféricas das cidades desguarnecidas em todos os seus aspectos, especialmente na segurança.

Esses espaços foram sendo ocupados por organizações não-estatais ou paraestatais. Esse é um outro setor que também puxa para uma coisa muito conservadora, porque, nesses espaços, é o reino da força. É onde prevalecem as relações de força e não as relações de convencimento. Portanto, são áreas muito tendentes a posições de tipo autoritário, pela própria natureza da sua inserção [na sociedade].

E, novamente, o que aconteceu? Tal como as confissões evangélicas estavam crescendo, isso também estava crescendo. E já havia também expressões políticas aqui e ali, que refletiam esse processo. Mas, de repente, o Bolsonaro amalgamou tudo isso em torno dele. Tal como aconteceu no segmento evangélico, isso veio à tona de uma maneira relativamente explosiva, embora a gente soubesse que estava se acumulando há muito tempo, até porque se não tivesse, não teria a força que tem.

Então isso também deve fazer parte de um complexo de conservadorismo popular. Porque veja, você tem milhões de pessoas envolvidas com essas atividades no Brasil. É uma parte da sociedade brasileira que faz todo sentido imaginar que funcione como um elo desse conservadorismo popular.

O que eu estou dizendo é: são segmentos de direita que foram decantando ao longo dos anos, não apareciam como tais e agora apareceram na política. E nós não sabemos como é que isto vai evoluir a partir de agora. Como são segmentos importantes da sociedade, a minha tendência é dizer isto, de alguma maneira, tanto quanto outro, veio pra ficar e tem a ver com esse conservadorismo popular.

Se o Bolsonaro será capaz de seguir sendo porta-voz político dessas pessoas, eu não sei. O Bolsonaro é um político ainda em fase de teste. Ele tem uma carreira política muito antiga, mas que nunca foi expressiva. A partir de 2016 ele começa a se projetar e, de uma maneira meteórica, chega à Presidência da República sem ter nada consolidado. Então ele teria que consolidar essa base agora para manter esse lugar de porta-voz.

Até aqui tem um elemento que fala contra isso, que é o fato de o Bolsonaro não ter criado o seu partido político, além de ter se desfiliado do partido em que ele estava. Ele poderia ter fortalecido o PSL, poderia ter criado um novo partido, é o que se esperaria de uma liderança que tem uma perspectiva histórica, ou seja, que veio e que não quer sair do cenário. Isso não aconteceu.

Claro, é possível que as bases do Bolsonaro acabem se organizando de outra forma, em outros partidos — não sei. Eu não diria hoje que já existe um “bolsonarismo”. Existe o Bolsonaro que, sem dúvida, é uma liderança importante. Mas, se ele vai se consolidar como uma liderança com futuro e uma base estruturada, não sabemos.

Mas como vai ficar é justamente a pergunta difícil de responder. O Bolsonaro ainda é um personagem in the making.


Pindograma: No seu artigo, você fala do conservadorismo popular como um fenômeno de longo prazo. E agora, você afirmou que os evangélicos vêm crescendo desde 1960 e que as questões de segurança vêm desde o pós-1964. Dado que essas forças conservadoras estavam, como você diz, decantando na sociedade brasileira por tanto tempo, foi só uma questão do acaso não ter surgido alguém como o Bolsonaro antes? Ou teve algo em particular em 2018 que levou a isso?

Singer: Eu acho que faz parte de um movimento cíclico da política brasileira. Eu falo de cíclico pelo seguinte motivo: ele se deu em 1964 e ele volta a se dar em 2018. Tanto em um caso quanto no outro, a direita brasileira ia lá, arrastando junto com ela setores importantes do centro.

A questão democrática do Brasil é a seguinte: as forças precisam se alternar [no poder]. Só que quando você consolida um campo popular, é muito difícil que o que eu chamo de “classe média” ganhe a eleição, porque o Brasil é tão desigual.

Em 2014, o PSDB, [partido da “classe média”], quase ganhou, faltou pouco. Eu acho que entra aqui um pouco daquela margem de ação que os homens têm, porque eles podiam ter esperado. Eles poderiam ter esperado a eleição de 2018, mas eles não quiseram esperar, com medo de que viesse o Lula.

E aí, eles cederam. Ao final de 2014, depois da reeleição da Dilma, o PSDB cedeu a uma pressão que estava vindo da direita, que era uma pressão golpista parecida com a de 1964, só que não de golpe militar. No caso de 2018, o que está por trás é o golpe parlamentar de 2016. Essa é uma espécie de levante de direita, onde todas essas coisas que estavam enrustidas emergem.


Pindograma: O casamento gay é muito mais aceito hoje do que era há dez, vinte anos. É um exemplo de uma atitude onde a sociedade brasileira era muito conservadora, mas houve uma mudança. Já em temas como o aborto isso não aconteceu. Levantamos esses exemplos pra perguntar: é possível tentar mudar esse conservadorismo popular de alguma forma? Ou a esquerda brasileira sempre vai ter que buscar desativar essas tendências e focar nos aspectos econômicos para se eleger?

Singer: Nada é eterno, nada é definitivo, né? Não só existem vias para mudar, como provavelmente vai mudar com o tempo. As coisas mudam. O problema é que ideologia é o que os cientistas políticos chamam de fator de longo prazo.

Quais são as vias de mudança? Temos que considerar em que medida a sociedade muda. Você mencionou que hoje a sociedade brasileira é mais aberta ao casamento gay do que era o passado. Eu concordo. Eu só não diria que é a sociedade toda [que está mais aberta], mas sim certos segmentos na sociedade. Porque em algumas dimensões, a sociedade brasileira mudou.

Por exemplo, aumentou muito a escolaridade, apesar dos déficits de qualidade que a escolarização brasileira tem. Isso faz diferença. Por mais que tenha problema de analfabetismo funcional, a quantidade de brasileiros que sabem ler e escrever aumentou muito. Essas são transformações importantes na sociedade. Temos que olhar esses fatores para entender a questão da ideologia, em que direção vai a sociedade brasileira.

Por outro lado, você tem sim a possibilidade que o ponto de vista de determinados segmentos se altere através de ações deliberadas de segmentos políticos com o passar do tempo. Aí entra uma discussão mais complicada, porque ela envolve problemas de conjuntura como aconteceu em 2016, 2018, em que houve uma radicalização à direita. Evidentemente, fica mais difícil nesse contexto.

Mas, também há problemas de uma ordem mais estrutural. Como é que a esquerda brasileira vai apresentar o seu projeto e, sobretudo, como que ela vai definir o seu projeto para o Brasil, para uma sociedade com essas características? O Brasil é um país que apostou fortemente na industrialização, corretamente na minha opinião, entre 1930 e 1980. Mas hoje as possibilidades de industrialização são muito limitadas. Para países periféricos como o nosso, que tipo de projeto a esquerda deve apresentar para sociedade brasileira, nessas condições?

Não é fácil. Então, eu acho que sim, há possibilidade de mudança. Mas vai depender de uma série de fatores que precisam ser analisados e combinados.


Pindograma: Você olha para os fenômenos da sociedade brasileira de uma maneira bem ampla e histórica. Tem até um trecho, no seu livro Os sentidos do lulismo, onde você evoca a tradição uspiana dos anos sessenta. Isso é uma coisa que vem ficando cada vez mais incomum na na ciência política de hoje, que é muito centrada em conjuntos de dados relativamente limitados, que são interpretados com técnicas estatísticas chiques. Essas técnicas nos permitem tirar conclusões mais sólidas, mas geralmente, de menor escopo. Como você vê essas duas tendências das ciências sociais dialogando — ou não — para entender o que está acontecendo na sociedade brasileira?

Singer: É, eu acho que a gente reproduz uma tendência mundial. Há uma espécie de cientifização das ciências sociais, no mau sentido da palavra. Um excesso de quantitativismo. Eu não sou muito negativo sobre isso, porque acho que os números são fundamentais e podem trazer muito conhecimento. O problema é quando há uma espécie de focalização excessiva nos números e na estatística.

Porém, continuam havendo espaços em que se fazem análises histórico-estruturais, com outros tipos de abordagem, nas quais a inspiração no Marx — que foi um pouco que a escola paulista de sociologia fez nos anos sessenta — continua produzindo bons resultados. Não que os problemas estejam resolvidos, e provavelmente nunca vão estar, mas eu vejo que há produção de trabalhos que ajudam a compreender o processo social mais amplo, relacionando economia, sociedade, política e às vezes até mesmo psicanálise, como foi o caso da Escola de Frankfurt e os trabalhos inspirados por ela.

Citaria aqui, por exemplo, um autor que não é marxista mas que usa o Marx quando é necessário, que é o Wolfgang Streeck, um sociólogo alemão. Ele produziu uma análise das consequências da crise de 2008 que parece muito boa no sentido de relacionar essas três dimensões: economia, sociedade e política. Só para dar um exemplo de trabalhos que eu acho que são bons nesse sentido e obviamente usam dados, mas de uma maneira contextualizada.


Pindograma: Na sua trajetória pessoal, você viu de tudo um pouco: tanto no jornalismo, quanto na política e agora na academia. Como você viu cada um desses mundos? E particularmente, como foi a transição do governo Lula de volta a academia?

Singer: É, eu de fato fiz uma trajetória até certo ponto eclética. Eu passei os primeiros dez anos, depois de formado em ciências sociais, fazendo jornalismo na ECA e trabalhando na Folha como jornalista. Aquilo me absorveu muito. E como eu falo naquele posfácio dos Sentidos do lulismo, aquela experiência foi fundamental porque, talvez por características minhas, eu precisava muito entrar em contato com o dado concreto.

Eu não consigo pensar de maneira apenas abstrata. Eu sei e acho que a abstração é absolutamente necessária se você quiser fazer uma interpretação mais profunda dos acontecimentos, mas eu tenho absoluta necessidade, como dizia o Marx, de partir do concreto. Eu não consigo vir da abstração para o concreto. Nem sei se é bom, mas mesmo que não fosse eu não conseguiria.

Então, esse mergulho na na realidade através do jornalismo foi muito importante pra mim. E durante a minha experiência no governo, eu tive o privilégio de poder ver a política funcionando de fato. Quando eu escrevo, hoje em dia, tenho sempre na minha cabeça aquilo que eu pude observar.

Claro que os personagens já mudaram, as situações mudaram, não são a mesma coisa. Tem até áreas que eu não tive nenhum contato, como os militares. Então, eu não sei como funciona. E justamente por isso, agora, nos últimos anos, onde me vejo confrontado com problemas que dizem respeito aos militares, eu percebo que não sei como abordar o problema, porque não tenho esse ponto de partida do que pra mim é fundamental.

Durante esses anos, eu não pratiquei a teoria, mas eu tive esse privilégio de poder me aproximar do empírico. Então quando eu voltei do governo, tinha elaborado algumas ideias sobre o que eu depois chamei de lulismo, na minha cabeça. Isso ainda era algo empírico e intuitivo. Mas eu estava com muita vontade de tentar transformar isso numa interpretação, e eu acho que consegui.

Do ponto de vista prático eu tive que me reacostumar com tudo [quando voltei à USP]. A rotina é muito diferente: eu estava enferrujado para dar aulas e [para arcar] com tudo que representa esse dia a dia do professor. A outra coisa é que a vida universitária é muito mais sedentária e mais isolada, em certo sentido, do que o jornalismo, que é muito vivo e tem muita adrenalina.

Como todo ser humano, tive que reaprender ali. No caso, de maneira até um pouco mais radical. Percebi que se eu não fizesse um mergulho… Era o último apito do bonde, por causa da minha idade, pra fazer alguma coisa que queria muito fazer. Então, tomei a decisão de me afastar completamente do jornalismo. Foi a primeira vez que fiz isso.

Tanto é que até hoje eu recebo convites pra participar de [conferências de] jornalismo. Eu falo: “olha, gente, eu não tenho mais condição, tô completamente afastado, não sei mais nada, não conheço mais ninguém, não sei como funciona”. Eu perdi todo esse negócio da internet, que entrou pra valer. Não sei como é o jornalismo hoje. Mas, enfim, valeu a pena.


Pindograma: Pensando em 2022, você acha que vai ter alguma candidatura de centro que vai conseguir atrair uma parte significativa do eleitorado? Ou as ideologias estão tão ativadas na sociedade que não há chance nenhuma para um candidato mais ao centro?

Singer: Essa resposta tem que ser dada em duas partes. A primeira é uma resposta mais teórica e depois tem um problema, vamos dizer, prático.

A resposta teórica é que haveria espaço. Aproveito para chamar atenção para a sequência de dados do Datafolha, que mostra um crescimento do centro a partir de 2016. É um crescimento grande e difícil de explicar. Eu fiquei pensando durante muito tempo na época em que estava escrevendo artigo e não consegui achar uma explicação pra isso.

Havia uma polarização entre esquerda e direita, mas de repente o centro sobe uns 10 pontos, é muita coisa. Eu não sei explicar. Eu diria que há um espaço ao centro; é nítido isso. Quando a gente olha os dados, há um eleitorado que não tá nem de um lado nem de outro. Maior ou menor, ele existe, ele é significativo. Então, teoricamente a minha resposta é sim, haveria espaço.

Agora, falando em termos práticos, o problema é que não surgiu nenhum candidato pra ocupar esse espaço. Simplesmente não surgiu. A teoria só propõe os elementos, certo? Mas se a coisa não funciona na prática, ela não funciona. E, até agora, nenhum candidato emplacou.

Tem o Luciano Huck, mas ele tá há tempo demais, dizendo que vai, não vai. Tudo isso tem um limite, porque o candidato tem que ir à luta, não tem jeito. A minha experiência de acompanhar muito tempo a política, mostra que candidato não sai assim sozinho. Ele pode ter uma base, mas depois ele tem que ir, tem que buscar o eleitor e as alianças ativamente. Se não, não tem chance de sucesso. Não conheço nenhum caso de um candidato que se faz em casa e pronto.

O Ciro parece estar tentando um movimento pra ocupar esse espaço, mas ele tem uma trajetória longa e eu acho que ele tende a criar muitas arestas. Então, eu vejo dificuldades aí. Há outros candidatos possíveis que nem estão sendo muito mencionados, como é o caso da Marina Silva. Por exemplo, a Marina Silva seria uma candidata, mas na minha opinião, ela é menos ativa do que ela precisaria ser pra se fixar como uma opção real para o eleitorado.

Há o governador de São Paulo, João Dória. São Paulo é um estado importante, mas ele tem dificuldades no resto do Brasil. Ele foi muito bem num certo momento com a questão da vacina, mas depois a situação não ficou tão boa assim em São Paulo, estado muito castigado pela pandemia. Eu acho que também pra ele não tá muito fácil.

Teoricamente haveria sim o espaço, mas um candidato que consiga galvanizar [o voto] dentro desse espaço não se apresentou até aqui.


Pindograma: Algumas das lideranças de centro que vêm surgindo na política, como os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP), têm muito essa coisa do discurso de priorizar as políticas públicas baseadas em evidências.

Singer: Eu acho que sim, essa preocupação é associada ao centro. É uma posição que tende a neutralizar conflitos, no sentido de subsumi-los a uma razão técnica que seria superior aos próprios conflitos. O político de centro poderia propor um equilíbrio que não seria nem muito pra lá, nem muito pra cá.

Agora, na realidade, qualquer segmento político mais racional, seja de esquerda ou de direita, tende a usar os elementos técnicos da mesma maneira. Não tem grande diferença. Desde que se queira fazer um governo racional, não é possível governar se não houver instrumentos, se você não tiver base de conhecimento. Governar não é uma coisa intuitiva.

Você pode ver isso na medida em que, tanto no governo Fernando Henrique quanto nos governos Lula e Dilma, havia equipes técnicas sérias. Propuseram algumas soluções divergentes e outras convergentes, mas no final havia uma racionalidade por trás das decisões. Então eu não acho que esquerda e direita tenham grande diferença nisso.

O que a gente tá observando agora é esse fenômeno novo e importante da extrema-direita, que joga com elementos que são muito próprios. É um certo gosto pela irracionalidade, justamente porque é o que não é dominante, é uma espécie de anti-establishment. Isso cria uma grande confusão, porque muda todos os parâmetros. Analistas se perdem, porque estão sempre lidando com esses parâmetros que envolvem algum tipo de conhecimento técnico racional e, de repente, começa a ter uma política que não obedece mais a esses parâmetros.


Pindograma: Para concluir, qual é sua estatística favorita?

Singer: Não vou fugir do teor da entrevista. O que mais me encanta é justamente essa estatística que mostra a relação entre posicionamento ideológico e voto, que acabou sendo de novo muito poderosa. Nem fui eu que fiz o cálculo, foi o Oswaldo Amaral, colega da Unicamp. Ela foi muito poderosa na eleição de 2018.

Eu não tenho tanto encantamento com estatística em si, mas enfim, já que você perguntou, é essa.


Créditos da imagem: Marcos Santos/USP Imagens.

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foto do autor

Pedro Siemsen

é repórter do Pindograma.

Daniel Ferreira

é editor do Pindograma.

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