A nova constituição chilena: uma entrevista com Patricio Navia


Para cientista político, nova constituição pode comprometer desenvolvimento econômico
POR FRANCISCO RICCI • 23/04/2021

A atual constituição chilena foi escrita durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1989) e foi mantida mesmo depois da ditadura acabar. A manutenção da Constituição de 1980 garantiu que diversos dispositivos legais da era autoritária ainda guiassem os rumos do país após o restabelecimento da democracia, situação que sempre provocou discussões na sociedade chilena.

Mais recentemente, no entanto, essas discussões chegaram a um ponto crítico. Seis meses atrás, depois de um período de fortes protestos que começaram como um movimento contra um aumento na tarifa do metrô de Santiago, os chilenos decidiram jogar fora o antigo documento e escrever uma nova carta em uma Convenção Constitucional.

O movimento por uma nova constituição popularizou-se ao denunciar a desigualdade do país, o custo crescente dos serviços de saúde e do sistema de previdência privada. No dia 16 de maio, o povo chileno estará de volta às urnas para eleger os membros da Convenção.

O Pindograma pediu a opinião de Patricio Navia, professor de ciência política da Universidade Diego Portales em Santiago e do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Nova York, sobre a votação que está por vir. Navia acredita que seus compatriotas estão otimistas demais com os benefícios que uma nova constituição trará, e teme que algumas mudanças possam reverter o país a um estágio inferior de desenvolvimento.

Nesta entrevista, Navia discute que tipo de Estado pode emergir da Convenção Constitucional e o que pode dar errado no processo. Ele também compara o caso chileno com o do Brasil e do resto da América Latina. Uma versão em inglês dessa entrevista foi publicada anteriormente no The Brazilian Report.


Pindograma: Quando o povo chileno votou por uma nova constituição, que mensagem ressoou na classe política chilena e no país como um todo?

Patricio Navia: A mensagem foi de rejeição aos abusos do sistema atual. Mas eu percebi muito mais esperança do que descontentamento. Nós chilenos tivemos a esperança de que, depois de todo o progresso do país, ainda poderíamos ter melhores pensões, moradia e mais oportunidades para todos. As expectativas estão muito altas.

Para dar um exemplo: no início da campanha de vacinação do Chile [em dezembro], estávamos nos comparando com Israel, um dos únicos países que vinham vacinando mais rápido do que nós. Não nos comparamos mais com a América Latina. Somos como os brasileiros na Copa do Mundo: ou ganhamos o título ou é uma decepção.

No entanto, os chilenos estão pensando apenas no lado positivo; eles não estão considerando o lado negativo do processo de uma nova redação constitucional. Eles acham que uma nova constituição vai trazer uma melhor distribuição dos “ovos de ouro”, a riqueza do país. Mas eles presumem que a economia produtiva — o ganso que põe os ovos de ouro — estará aqui para sempre. Você tem que alimentar o ganso e tomar cuidado para ele não voar e fugir.


Pindograma: Você poderia dar exemplos de mudanças na nova constituição que poderiam impedir o crescimento do Chile no futuro?

Patricio Navia: Se a constituição estabelece pensões mínimas garantidas e o direito universal à moradia, os custos orçamentários dessas promessas forçarão o país a tomar emprestado mais dinheiro do que pode pagar. Isso acabará gerando uma crise de dívida semelhante à que aconteceu na Argentina ou no Equador. Não acontecerá imediatamente, mas acontecerá eventualmente. A expansão dos direitos sociais só pode acontecer quando concebida como parte de um plano maior e mais abrangente que inclui o foco na geração de crescimento.


Pindograma: Há ligação entre o lema “quatro centavos” do movimento no Chile com o lema brasileiro “não são só os 20 centavos”, em 2013?

Patricio Navia: Existem muitas semelhanças. Em ambos os países, esses protestos aconteceram quando o boom das commodities estava chegando ao fim. O rápido crescimento econômico do Brasil nos últimos 15 anos estava terminando, e muitos sentiam que os portões da terra prometida estavam se fechando.

Eu tive a mesma percepção sobre o Chile. Muitos dos manifestantes aqui eram estudantes universitários de primeira geração, que obedeciam às regras, que tiveram acesso à educação universitária — às vezes em faculdades ruins, mas ainda assim uma formação. Mas agora as condições econômicas para as quais eles se preparavam começaram a desaparecer. Eles acreditaram em um sonho que sumiu. Surgiu a percepção de que o país era tão rico que não haveria razão concreta para seus sonhos não se concretizarem.


Pindograma: Mas no Brasil você também teve os escândalos de corrupção…

Patricio Navia: Com certeza. E muitas pessoas no Brasil sentem que a corrupção é o que lhes tirou o sonho prometido. Essa preocupação com a corrupção está muito relacionada com o fim do boom das commodities. Quando o ganso estava botando muitos ovos de ouro, as pessoas sabiam que os políticos estavam levando alguns por fora. Mas quando a economia para de crescer, muitos pensam que o ganso ainda está botando ovos, mas que os políticos devem estar roubando tudo, já que a maioria das pessoas não entende as flutuações dos preços do cobre e assim por diante.


Pindograma: Analistas apontam que os manifestantes ficaram chateados com a gestão do presidente Piñera, mas também com o governo de Bachelet e a política nos últimos 30 anos como um todo. A nova constituição é uma válvula de escape para esse descontentamento geral?

Patricio Navia: Sim, acho que todo o descontentamento foi focado na constituição de 1980, que passou a representar a ditadura militar e a democracia que veio depois dela. Nesse sentido, a nova constituição é a nossa pílula milagrosa. No Brasil, o Bolsonaro era a pílula milagrosa. As pessoas inventaram que ele era o que queriam que ele fosse, não o que o Bolsonaro realmente era, é claro. Ele acabaria com a corrupção, implementaria reformas. Ele era uma ideia adaptável ao descontentamento das pessoas.

A nova constituição do Chile funciona da mesma forma. As pessoas pensam que ela acabará com todos os abusos do sistema atual. Os políticos que fizeram campanha por uma nova constituição insistem que ela vai reduzir a desigualdade. O que é irônico, já que a América Latina tem mais constituições na história moderna do que qualquer outra região do mundo e é conhecida pela desigualdade. Como a constituição foi vendida como uma pílula milagrosa, acho que as pessoas ficarão desapontadas quando ela finalmente chegar, pois, sem um crescimento considerável, será difícil resolver muitos dos problemas sociais que enfrentamos.


Pindograma: O senhor argumentou que uma constituição minimalista é impossível, uma vez que os 155 constituintes terão todos “listas de desejos” do que querem no texto, incluindo direitos ao meio ambiente, direito de processar o Estado se for assaltado, etc. você acha que será uma constituição maximalista?

Patricio Navia: A nova constituição do Chile não seguirá os modelos fracassados da Venezuela, Bolívia ou Equador, porque não temos um presidente de esquerda fazendo pressão pela mudança. Nosso novo texto se assemelhará aos casos relativamente bem-sucedidos da Colômbia ou do Brasil.

Mas essas constituições, embora tenham muitos pontos fortes, partilham de dois problemas principais. Em primeiro lugar, ao tentar estabelecer muitos direitos, são textos longos que contêm partes contraditórias. Essas contradições acabam gerando um poder judiciário problemático que tem que resolver o que significa o quê. Em segundo lugar, elas criam compromissos fiscais demais. Com uma estrutura tão rígida de gastos do Estado, fica difícil equilibrar o orçamento ou atualizar as prioridades do orçamento.


Pindograma: Qual parece ser o maior erro que os constituintes podem cometer ao escrever uma nova constituição? E você acha que eles vão acertar?

Patricio Navia: Bem, constituições são como casas. O problema da nossa casa, da nossa constituição, é que ela foi construída pelo ditador. Não gostamos da casa, não pelo que a casa é, mas pela memória que ela traz.

Em termos de oportunidades de avanço, acho que a nova constituição vai equilibrar a relação entre os poderes Executivo e Legislativo no Chile. Hoje, não existe uma relação ideal entre os poderes. Atualmente, o sistema dá muito poder ao presidente. O presidente é o único que pode introduzir legislação que cria despesas. Sem o que fazer, o Congresso fica se preocupando com coisas irrelevantes ou acabam investigando o presidente ou o gabinete ministerial.

Também poderíamos avançar introduzindo mais mecanismos de participação popular — talvez o poder de bloquear certos projetos no Congresso, convocando um referendo sobre a proposta.

Em termos de erros, minha preocupação é que as pessoas estejam se concentrando nas coisas erradas. As pessoas estão prestando muita atenção na parte de direitos do texto, como quais novos direitos serão implementados, mas não na nova estrutura do governo. Estamos escrevendo uma nova constituição pelos motivos errados. Queríamos reformar a cozinha, mas acabamos derrubando toda a casa.


Pindograma: O Chile tem se destacado na América Latina em termos de estabilidade política e crescimento econômico estável. A nova constituição parece capaz de mudar a relação entre o Estado e o setor privado. O que isso significará para o “modelo chileno” e para o país daqui para frente?

Patricio Navia: Para ter um crescimento econômico sustentado, é necessário um setor privado forte aliado a um setor público regulador forte. A pandemia nos mostrou que países sem um setor público forte podem falhar miseravelmente. Por exemplo, o Peru teve muito crescimento econômico, mas não tinha realmente um Estado, então agora está tudo desabando, até no setor privado. A produção da mineração entrou em colapso porque o Estado não pôde nem garantir a segurança do povo.

No Chile, o setor público é fraco e o setor privado muito forte. A história da América Latina, porém, mostra que o fenômeno oposto pode ser igualmente ruim. O intelectual mexicano Octavio Paz falava do “Ogro Filantrópico” na América Latina, um Estado que quer fazer muitas coisas e, embora ajude, também acaba travando o crescimento. Este é o maior risco para o Chile. Precisamos deixar o Estado chileno crescer, mas moldá-lo para que não sigamos os maus exemplos latino-americanos. No Brasil os custos para fazer negócios são muito altos, e o Estado é esse gigante que anda muito devagar. Esses Estados têm boas intenções, mas são ineficazes.


Pindograma: Você está otimista com o futuro do Chile?

Patricio Navia: Não, não estou otimista. Acho que no curto prazo teremos um bom desempenho, já que a economia global está a nosso favor no momento. Mas depois da mudança constitucional, teremos problemas no longo prazo. Dependendo do que mudarmos, podemos acabar com um sistema complexo que limita o crescimento. Os chilenos ficarão desapontados ao perceber que teremos permanecido como outras nações latino-americanas, sem pleno desenvolvimento econômico.

Ainda há esperança para o futuro, porém. Talvez, ao revisitar este momento, repensemos nossas escolhas após os tumultos. Se fizermos isso, os chilenos podem perceber que, com as correções adequadas, devemos sim adotar o “neoliberalismo”. É claro, ninguém vai chamá-lo assim, vamos inventar um novo nome para o sistema.

Mas se continuarmos como estamos, sem perceber que esta constituição como está sendo pensada não é a mudança de que precisamos, que pode prejudicar nosso desenvolvimento econômico, então seguiremos o caminho da Argentina e do Brasil. Seremos um país okay, com muitos problemas. Mas não seremos a nação que poderíamos ser, a nação que a maioria dos chilenos quer, com muito desenvolvimento e baixa desigualdade.


Pindograma: Quem redigirá a Constituição?

Patricio Navia: As pesquisas mostram que a oposição, a esquerda, terá cerca de 60% dos votos, mas como está dividida entre muitos partidos e listas eleitorais pode ficar com algo próximo a 50% das cadeiras. Portanto, a coalizão de direita, com seus votos concentrados, pode acabar com a maioria na convenção, embora sejam muito menos populares. Isso será uma grande decepção para aqueles que marcharam pela nova constituição.

                   

Pindograma: E o que isso significaria para a própria nova constituição?

Patricio Navia: Uma convenção de direita ainda acrescentará mais direitos sociais [ao que temos atualmente], mas também garantirá a independência do banco central, a proteção dos direitos de propriedade e assim por diante. Eles vão demolir a casa e construir uma nova que ainda decepciona a muitos, mas provavelmente será o menor dos dois males.

           

Pindograma: Falando em quem vai redigir a constituição, a convenção será eleita com paridade de gênero, então 50% dos membros serão mulheres. O que você acha do significado simbólico dessa mudança?

Patricio Navia: Isto é muito importante. É fundamental que a constituição represente a diversidade do país, especialmente a diversidade de gênero. A convenção também terá algumas cadeiras reservadas para grupos indígenas — o que é essencial —, mas temos que ver quais interesses eles representarão exatamente. A diversidade de classes, no entanto, ainda está faltando. E, além disso, eu diria que falta mais do que qualquer coisa uma diversidade de ideias.


Créditos da imagem: Gobierno de Chile; Cámara de Diputadas y Diputados de Chile.

[Gostou do nosso conteúdo? Siga-nos no Twitter, no Facebook e no Instagram.]

foto do autor

Francisco Ricci é fundador e repórter do Pindograma.

A nova constituição chilena: uma entrevista com Patricio Navia

Para cientista político, nova constituição pode comprometer desenvolvimento econômico

POR FRANCISCO RICCI

23/04/2021

A atual constituição chilena foi escrita durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1989) e foi mantida mesmo depois da ditadura acabar. A manutenção da Constituição de 1980 garantiu que diversos dispositivos legais da era autoritária ainda guiassem os rumos do país após o restabelecimento da democracia, situação que sempre provocou discussões na sociedade chilena.

Mais recentemente, no entanto, essas discussões chegaram a um ponto crítico. Seis meses atrás, depois de um período de fortes protestos que começaram como um movimento contra um aumento na tarifa do metrô de Santiago, os chilenos decidiram jogar fora o antigo documento e escrever uma nova carta em uma Convenção Constitucional.

O movimento por uma nova constituição popularizou-se ao denunciar a desigualdade do país, o custo crescente dos serviços de saúde e do sistema de previdência privada. No dia 16 de maio, o povo chileno estará de volta às urnas para eleger os membros da Convenção.

O Pindograma pediu a opinião de Patricio Navia, professor de ciência política da Universidade Diego Portales em Santiago e do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Nova York, sobre a votação que está por vir. Navia acredita que seus compatriotas estão otimistas demais com os benefícios que uma nova constituição trará, e teme que algumas mudanças possam reverter o país a um estágio inferior de desenvolvimento.

Nesta entrevista, Navia discute que tipo de Estado pode emergir da Convenção Constitucional e o que pode dar errado no processo. Ele também compara o caso chileno com o do Brasil e do resto da América Latina. Uma versão em inglês dessa entrevista foi publicada anteriormente no The Brazilian Report.


Pindograma: Quando o povo chileno votou por uma nova constituição, que mensagem ressoou na classe política chilena e no país como um todo?

Patricio Navia: A mensagem foi de rejeição aos abusos do sistema atual. Mas eu percebi muito mais esperança do que descontentamento. Nós chilenos tivemos a esperança de que, depois de todo o progresso do país, ainda poderíamos ter melhores pensões, moradia e mais oportunidades para todos. As expectativas estão muito altas.

Para dar um exemplo: no início da campanha de vacinação do Chile [em dezembro], estávamos nos comparando com Israel, um dos únicos países que vinham vacinando mais rápido do que nós. Não nos comparamos mais com a América Latina. Somos como os brasileiros na Copa do Mundo: ou ganhamos o título ou é uma decepção.

No entanto, os chilenos estão pensando apenas no lado positivo; eles não estão considerando o lado negativo do processo de uma nova redação constitucional. Eles acham que uma nova constituição vai trazer uma melhor distribuição dos “ovos de ouro”, a riqueza do país. Mas eles presumem que a economia produtiva — o ganso que põe os ovos de ouro — estará aqui para sempre. Você tem que alimentar o ganso e tomar cuidado para ele não voar e fugir.


Pindograma: Você poderia dar exemplos de mudanças na nova constituição que poderiam impedir o crescimento do Chile no futuro?

Patricio Navia: Se a constituição estabelece pensões mínimas garantidas e o direito universal à moradia, os custos orçamentários dessas promessas forçarão o país a tomar emprestado mais dinheiro do que pode pagar. Isso acabará gerando uma crise de dívida semelhante à que aconteceu na Argentina ou no Equador. Não acontecerá imediatamente, mas acontecerá eventualmente. A expansão dos direitos sociais só pode acontecer quando concebida como parte de um plano maior e mais abrangente que inclui o foco na geração de crescimento.


Pindograma: Há ligação entre o lema “quatro centavos” do movimento no Chile com o lema brasileiro “não são só os 20 centavos”, em 2013?

Patricio Navia: Existem muitas semelhanças. Em ambos os países, esses protestos aconteceram quando o boom das commodities estava chegando ao fim. O rápido crescimento econômico do Brasil nos últimos 15 anos estava terminando, e muitos sentiam que os portões da terra prometida estavam se fechando.

Eu tive a mesma percepção sobre o Chile. Muitos dos manifestantes aqui eram estudantes universitários de primeira geração, que obedeciam às regras, que tiveram acesso à educação universitária — às vezes em faculdades ruins, mas ainda assim uma formação. Mas agora as condições econômicas para as quais eles se preparavam começaram a desaparecer. Eles acreditaram em um sonho que sumiu. Surgiu a percepção de que o país era tão rico que não haveria razão concreta para seus sonhos não se concretizarem.


Pindograma: Mas no Brasil você também teve os escândalos de corrupção…

Patricio Navia: Com certeza. E muitas pessoas no Brasil sentem que a corrupção é o que lhes tirou o sonho prometido. Essa preocupação com a corrupção está muito relacionada com o fim do boom das commodities. Quando o ganso estava botando muitos ovos de ouro, as pessoas sabiam que os políticos estavam levando alguns por fora. Mas quando a economia para de crescer, muitos pensam que o ganso ainda está botando ovos, mas que os políticos devem estar roubando tudo, já que a maioria das pessoas não entende as flutuações dos preços do cobre e assim por diante.


Pindograma: Analistas apontam que os manifestantes ficaram chateados com a gestão do presidente Piñera, mas também com o governo de Bachelet e a política nos últimos 30 anos como um todo. A nova constituição é uma válvula de escape para esse descontentamento geral?

Patricio Navia: Sim, acho que todo o descontentamento foi focado na constituição de 1980, que passou a representar a ditadura militar e a democracia que veio depois dela. Nesse sentido, a nova constituição é a nossa pílula milagrosa. No Brasil, o Bolsonaro era a pílula milagrosa. As pessoas inventaram que ele era o que queriam que ele fosse, não o que o Bolsonaro realmente era, é claro. Ele acabaria com a corrupção, implementaria reformas. Ele era uma ideia adaptável ao descontentamento das pessoas.

A nova constituição do Chile funciona da mesma forma. As pessoas pensam que ela acabará com todos os abusos do sistema atual. Os políticos que fizeram campanha por uma nova constituição insistem que ela vai reduzir a desigualdade. O que é irônico, já que a América Latina tem mais constituições na história moderna do que qualquer outra região do mundo e é conhecida pela desigualdade. Como a constituição foi vendida como uma pílula milagrosa, acho que as pessoas ficarão desapontadas quando ela finalmente chegar, pois, sem um crescimento considerável, será difícil resolver muitos dos problemas sociais que enfrentamos.


Pindograma: O senhor argumentou que uma constituição minimalista é impossível, uma vez que os 155 constituintes terão todos “listas de desejos” do que querem no texto, incluindo direitos ao meio ambiente, direito de processar o Estado se for assaltado, etc. você acha que será uma constituição maximalista?

Patricio Navia: A nova constituição do Chile não seguirá os modelos fracassados da Venezuela, Bolívia ou Equador, porque não temos um presidente de esquerda fazendo pressão pela mudança. Nosso novo texto se assemelhará aos casos relativamente bem-sucedidos da Colômbia ou do Brasil.

Mas essas constituições, embora tenham muitos pontos fortes, partilham de dois problemas principais. Em primeiro lugar, ao tentar estabelecer muitos direitos, são textos longos que contêm partes contraditórias. Essas contradições acabam gerando um poder judiciário problemático que tem que resolver o que significa o quê. Em segundo lugar, elas criam compromissos fiscais demais. Com uma estrutura tão rígida de gastos do Estado, fica difícil equilibrar o orçamento ou atualizar as prioridades do orçamento.


Pindograma: Qual parece ser o maior erro que os constituintes podem cometer ao escrever uma nova constituição? E você acha que eles vão acertar?

Patricio Navia: Bem, constituições são como casas. O problema da nossa casa, da nossa constituição, é que ela foi construída pelo ditador. Não gostamos da casa, não pelo que a casa é, mas pela memória que ela traz.

Em termos de oportunidades de avanço, acho que a nova constituição vai equilibrar a relação entre os poderes Executivo e Legislativo no Chile. Hoje, não existe uma relação ideal entre os poderes. Atualmente, o sistema dá muito poder ao presidente. O presidente é o único que pode introduzir legislação que cria despesas. Sem o que fazer, o Congresso fica se preocupando com coisas irrelevantes ou acabam investigando o presidente ou o gabinete ministerial.

Também poderíamos avançar introduzindo mais mecanismos de participação popular — talvez o poder de bloquear certos projetos no Congresso, convocando um referendo sobre a proposta.

Em termos de erros, minha preocupação é que as pessoas estejam se concentrando nas coisas erradas. As pessoas estão prestando muita atenção na parte de direitos do texto, como quais novos direitos serão implementados, mas não na nova estrutura do governo. Estamos escrevendo uma nova constituição pelos motivos errados. Queríamos reformar a cozinha, mas acabamos derrubando toda a casa.


Pindograma: O Chile tem se destacado na América Latina em termos de estabilidade política e crescimento econômico estável. A nova constituição parece capaz de mudar a relação entre o Estado e o setor privado. O que isso significará para o “modelo chileno” e para o país daqui para frente?

Patricio Navia: Para ter um crescimento econômico sustentado, é necessário um setor privado forte aliado a um setor público regulador forte. A pandemia nos mostrou que países sem um setor público forte podem falhar miseravelmente. Por exemplo, o Peru teve muito crescimento econômico, mas não tinha realmente um Estado, então agora está tudo desabando, até no setor privado. A produção da mineração entrou em colapso porque o Estado não pôde nem garantir a segurança do povo.

No Chile, o setor público é fraco e o setor privado muito forte. A história da América Latina, porém, mostra que o fenômeno oposto pode ser igualmente ruim. O intelectual mexicano Octavio Paz falava do “Ogro Filantrópico” na América Latina, um Estado que quer fazer muitas coisas e, embora ajude, também acaba travando o crescimento. Este é o maior risco para o Chile. Precisamos deixar o Estado chileno crescer, mas moldá-lo para que não sigamos os maus exemplos latino-americanos. No Brasil os custos para fazer negócios são muito altos, e o Estado é esse gigante que anda muito devagar. Esses Estados têm boas intenções, mas são ineficazes.


Pindograma: Você está otimista com o futuro do Chile?

Patricio Navia: Não, não estou otimista. Acho que no curto prazo teremos um bom desempenho, já que a economia global está a nosso favor no momento. Mas depois da mudança constitucional, teremos problemas no longo prazo. Dependendo do que mudarmos, podemos acabar com um sistema complexo que limita o crescimento. Os chilenos ficarão desapontados ao perceber que teremos permanecido como outras nações latino-americanas, sem pleno desenvolvimento econômico.

Ainda há esperança para o futuro, porém. Talvez, ao revisitar este momento, repensemos nossas escolhas após os tumultos. Se fizermos isso, os chilenos podem perceber que, com as correções adequadas, devemos sim adotar o “neoliberalismo”. É claro, ninguém vai chamá-lo assim, vamos inventar um novo nome para o sistema.

Mas se continuarmos como estamos, sem perceber que esta constituição como está sendo pensada não é a mudança de que precisamos, que pode prejudicar nosso desenvolvimento econômico, então seguiremos o caminho da Argentina e do Brasil. Seremos um país okay, com muitos problemas. Mas não seremos a nação que poderíamos ser, a nação que a maioria dos chilenos quer, com muito desenvolvimento e baixa desigualdade.


Pindograma: Quem redigirá a Constituição?

Patricio Navia: As pesquisas mostram que a oposição, a esquerda, terá cerca de 60% dos votos, mas como está dividida entre muitos partidos e listas eleitorais pode ficar com algo próximo a 50% das cadeiras. Portanto, a coalizão de direita, com seus votos concentrados, pode acabar com a maioria na convenção, embora sejam muito menos populares. Isso será uma grande decepção para aqueles que marcharam pela nova constituição.

                   

Pindograma: E o que isso significaria para a própria nova constituição?

Patricio Navia: Uma convenção de direita ainda acrescentará mais direitos sociais [ao que temos atualmente], mas também garantirá a independência do banco central, a proteção dos direitos de propriedade e assim por diante. Eles vão demolir a casa e construir uma nova que ainda decepciona a muitos, mas provavelmente será o menor dos dois males.

           

Pindograma: Falando em quem vai redigir a constituição, a convenção será eleita com paridade de gênero, então 50% dos membros serão mulheres. O que você acha do significado simbólico dessa mudança?

Patricio Navia: Isto é muito importante. É fundamental que a constituição represente a diversidade do país, especialmente a diversidade de gênero. A convenção também terá algumas cadeiras reservadas para grupos indígenas — o que é essencial —, mas temos que ver quais interesses eles representarão exatamente. A diversidade de classes, no entanto, ainda está faltando. E, além disso, eu diria que falta mais do que qualquer coisa uma diversidade de ideias.


Créditos da imagem: Gobierno de Chile; Cámara de Diputadas y Diputados de Chile.

[Gostou do nosso conteúdo? Siga-nos no Twitter, no Facebook e no Instagram.]

foto do autor

Francisco Ricci

é fundador e repórter do Pindograma.

newsletter

Para receber notificações de novas matérias,

digite seu email:

(e aperte enter!)