2,9 kg de cocaína para uso pessoal: anomalias na aplicação da Lei de Drogas


Lei não enumera critérios objetivos para determinar enquadramento em tráfico ou porte de drogas para uso pessoal
POR JOÃO GADO F. COSTA • 11/03/2021

A Lei de Drogas de 2006 é ambígua ao diferenciar entre o crime de tráfico de drogas e o crime de porte de drogas: o texto legal não determina uma quantidade de droga que separe um do outro. Por isso, discernir entre esses dois crimes – e, consequentemente, entre uma pena socioeducativa e uma pena de 5 a 15 anos de prisão – acaba sendo uma decisão subjetiva de policiais, promotores e juízes. Uma portadora de 4 g de cocaína em São Paulo, por exemplo, tem a mesma chance de ser considerada traficante ou usuária pela polícia.

O espaço para arbitrariedade por parte dos agentes de segurança pública é grande e cria oportunidades para quantias pequenas serem classificadas como tráfico e para grandes quantidades serem classificadas como uso. Pesquisadores da Associação Brasileira de Jurimetria (Abjur) já provaram estatisticamente que há grande dose de subjetividade na classificação praticada pelos policiais. E essa subjetividade tem consequências sérias – em caso de flagrante, a classificação da ocorrência pode determinar se uma pessoa é ou não presa.

Outra pesquisa também já mostrou como essas decisões casuísticas prejudicam, no âmbito do Judiciário, a população negra.

Para ilustrar ainda mais intuitivamente os absurdos que essa falta de objetividade na lei produz, o Pindograma analisou algumas ocorrências anômalas de porte de drogas no estado de São Paulo em 2019. São casos que, embora excepcionais, revelam o problema de não haver critérios objetivos para classificar ocorrências como de uso ou de tráfico.


No estado de São Paulo, entre janeiro e dezembro de 2019, foram registrados aproximadamente 314 casos de porte de drogas nos quais a quantidade de maconha, cocaína ou crack encontrada foi registrada como igual ou superior a 50 g. Esse número representa 1,9% das ocorrências de porte dessas drogas no ano.

Algumas ocorrências anômalas registradas como porte de drogas para uso pessoal
No estado de São Paulo
Cidade Droga
Campinas 2,9 kg de cocaína e 2,92 kg de maconha em milhares de invólucros
Marília 2,24 kg de maconha em 2 tijolos
Capão Bonito 1,4 kg de maconha em 4 tijolos
Serra Negra 1,3 kg de maconha em 8 porções
São Vicente 1,2 kg de cocaína em 994 invólucros
São José dos Campos 390 g de cocaína em 200 invólucros
Ilha Comprida 188 g de cocaína em 241 invólucros
Fonte: SSP-SP

Erros de preenchimento de boletins de ocorrência podem ocorrer. Em um caso no qual constavam 171 kg de maconha nos dados, a delegacia responsável informou que, na realidade, se tratavam de 2 pés de maconha que pesavam apenas 1,71 kg ao todo. Também é possível que, no sistema, um policial tenha classificado uma ocorrência de tráfico como de porte por engano. Ainda assim, é improvável que todas as 314 anomalias na amostra do Pindograma tenham se devido apenas a erros de preenchimento.

A idade mediana dos infratores foi de 24 anos. O infrator mais jovem tinha apenas 13 anos e foi encontrado numa praça de Cajamar portando – não traficando – 62 g de maconha, o equivalente a pelo menos 60 cigarros. Já o denunciado mais velho portava uma quantidade similar da mesma droga, 50 g, e tinha 63 anos. O caso ocorreu em Franca.

105 profissões diferentes foram listadas para os autores desses crimes. A categoria de estudante, a mais comum, apareceu 67 vezes. O valor é 27 vezes maior que a quantidade de artistas, artistas plásticos e fotógrafos juntos.

Apesar de corresponder a quase metade da população do estado, apenas 18% dos casos anômalos, ou 57 ocorrências, foram localizados na Grande São Paulo. Os 82% restantes (257 casos) estavam em municípios fora da região metropolitana. As cidades do interior com o maior número de ocorrências anômalas foram Campinas (13), São José do Rio Preto (11) e Bauru (8).

A maioria dos envolvidos nessas ocorrências anômalas eram pessoas brancas (229), o que equivale a 59% das ocorrências. Enquanto isso, 144 ou 37% dos envolvidos eram pessoas pretas ou pardas. Esses números estão próximos às proporções raciais do estado (64% e 35% respectivamente), indicando que dentre estes casos anômalos, não parece haver um viés muito forte que favoreça os brancos com penas mais brandas.

A maconha foi a droga mais comum dentre esses casos: foram 292 ocorrências, ou 3 em cada 4 registros. Em segundo lugar veio a cocaína, com 40 casos.

Além dos casos de grandes quantidades de drogas enquadradas como porte, há também os casos nos quais infratores foram encontrados com uma grande variedade de drogas. Em 99% dos casos no estado, um indivíduo encontrado com 3 ou mais entorpecentes é indiciado por tráfico pela polícia. Mesmo assim, o Pindograma encontrou 147 ocorrências em 2019 nas quais uma pessoa ou um grupo de pessoas foram encontrados com 3 ou mais drogas e o caso foi considerado porte para uso pessoal.

É o caso, por exemplo, do grupo de 4 amigos encontrados em Lagoinha com mais de 23 porções de 7 tipos de drogas diferentes. O grupo, formado por dois artistas, um fotógrafo e um cozinheiro, carregava consigo maconha, LSD, cogumelos de psilocibina, haxixe, ecstasy e duas drogas não identificadas pela polícia. Todos tinham entre 27 e 30 anos e eram brancos.

A maconha, novamente, é a droga que mais figura nesta lista. Dos 128 casos analisados, apenas 4 não incluíam o entorpecente.


Dados utilizados na matéria: Ocorrências de posse e porte de drogas em São Paulo (SSP-SP).

Para reproduzir os números e gráficos da matéria, o código pode ser encontrado aqui.

Créditos da imagem: Divulgação/Polícia Civil do Estado de São Paulo.

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João Gado F. Costa é repórter do Pindograma.

2,9 kg de cocaína para uso pessoal: anomalias na aplicação da Lei de Drogas

Lei não enumera critérios objetivos para determinar enquadramento em tráfico ou porte de drogas para uso pessoal

POR JOÃO GADO F. COSTA

11/03/2021

A Lei de Drogas de 2006 é ambígua ao diferenciar entre o crime de tráfico de drogas e o crime de porte de drogas: o texto legal não determina uma quantidade de droga que separe um do outro. Por isso, discernir entre esses dois crimes – e, consequentemente, entre uma pena socioeducativa e uma pena de 5 a 15 anos de prisão – acaba sendo uma decisão subjetiva de policiais, promotores e juízes. Uma portadora de 4 g de cocaína em São Paulo, por exemplo, tem a mesma chance de ser considerada traficante ou usuária pela polícia.

O espaço para arbitrariedade por parte dos agentes de segurança pública é grande e cria oportunidades para quantias pequenas serem classificadas como tráfico e para grandes quantidades serem classificadas como uso. Pesquisadores da Associação Brasileira de Jurimetria (Abjur) já provaram estatisticamente que há grande dose de subjetividade na classificação praticada pelos policiais. E essa subjetividade tem consequências sérias – em caso de flagrante, a classificação da ocorrência pode determinar se uma pessoa é ou não presa.

Outra pesquisa também já mostrou como essas decisões casuísticas prejudicam, no âmbito do Judiciário, a população negra.

Para ilustrar ainda mais intuitivamente os absurdos que essa falta de objetividade na lei produz, o Pindograma analisou algumas ocorrências anômalas de porte de drogas no estado de São Paulo em 2019. São casos que, embora excepcionais, revelam o problema de não haver critérios objetivos para classificar ocorrências como de uso ou de tráfico.


No estado de São Paulo, entre janeiro e dezembro de 2019, foram registrados aproximadamente 314 casos de porte de drogas nos quais a quantidade de maconha, cocaína ou crack encontrada foi registrada como igual ou superior a 50 g. Esse número representa 1,9% das ocorrências de porte dessas drogas no ano.

Algumas ocorrências anômalas registradas como porte de drogas para uso pessoal
No estado de São Paulo
Cidade Droga
Campinas 2,9 kg de cocaína e 2,92 kg de maconha em milhares de invólucros
Marília 2,24 kg de maconha em 2 tijolos
Capão Bonito 1,4 kg de maconha em 4 tijolos
Serra Negra 1,3 kg de maconha em 8 porções
São Vicente 1,2 kg de cocaína em 994 invólucros
São José dos Campos 390 g de cocaína em 200 invólucros
Ilha Comprida 188 g de cocaína em 241 invólucros
Fonte: SSP-SP

Erros de preenchimento de boletins de ocorrência podem ocorrer. Em um caso no qual constavam 171 kg de maconha nos dados, a delegacia responsável informou que, na realidade, se tratavam de 2 pés de maconha que pesavam apenas 1,71 kg ao todo. Também é possível que, no sistema, um policial tenha classificado uma ocorrência de tráfico como de porte por engano. Ainda assim, é improvável que todas as 314 anomalias na amostra do Pindograma tenham se devido apenas a erros de preenchimento.

A idade mediana dos infratores foi de 24 anos. O infrator mais jovem tinha apenas 13 anos e foi encontrado numa praça de Cajamar portando – não traficando – 62 g de maconha, o equivalente a pelo menos 60 cigarros. Já o denunciado mais velho portava uma quantidade similar da mesma droga, 50 g, e tinha 63 anos. O caso ocorreu em Franca.

105 profissões diferentes foram listadas para os autores desses crimes. A categoria de estudante, a mais comum, apareceu 67 vezes. O valor é 27 vezes maior que a quantidade de artistas, artistas plásticos e fotógrafos juntos.

Apesar de corresponder a quase metade da população do estado, apenas 18% dos casos anômalos, ou 57 ocorrências, foram localizados na Grande São Paulo. Os 82% restantes (257 casos) estavam em municípios fora da região metropolitana. As cidades do interior com o maior número de ocorrências anômalas foram Campinas (13), São José do Rio Preto (11) e Bauru (8).

A maioria dos envolvidos nessas ocorrências anômalas eram pessoas brancas (229), o que equivale a 59% das ocorrências. Enquanto isso, 144 ou 37% dos envolvidos eram pessoas pretas ou pardas. Esses números estão próximos às proporções raciais do estado (64% e 35% respectivamente), indicando que dentre estes casos anômalos, não parece haver um viés muito forte que favoreça os brancos com penas mais brandas.

A maconha foi a droga mais comum dentre esses casos: foram 292 ocorrências, ou 3 em cada 4 registros. Em segundo lugar veio a cocaína, com 40 casos.

Além dos casos de grandes quantidades de drogas enquadradas como porte, há também os casos nos quais infratores foram encontrados com uma grande variedade de drogas. Em 99% dos casos no estado, um indivíduo encontrado com 3 ou mais entorpecentes é indiciado por tráfico pela polícia. Mesmo assim, o Pindograma encontrou 147 ocorrências em 2019 nas quais uma pessoa ou um grupo de pessoas foram encontrados com 3 ou mais drogas e o caso foi considerado porte para uso pessoal.

É o caso, por exemplo, do grupo de 4 amigos encontrados em Lagoinha com mais de 23 porções de 7 tipos de drogas diferentes. O grupo, formado por dois artistas, um fotógrafo e um cozinheiro, carregava consigo maconha, LSD, cogumelos de psilocibina, haxixe, ecstasy e duas drogas não identificadas pela polícia. Todos tinham entre 27 e 30 anos e eram brancos.

A maconha, novamente, é a droga que mais figura nesta lista. Dos 128 casos analisados, apenas 4 não incluíam o entorpecente.


Dados utilizados na matéria: Ocorrências de posse e porte de drogas em São Paulo (SSP-SP).

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Créditos da imagem: Divulgação/Polícia Civil do Estado de São Paulo.

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João Gado F. Costa

é repórter do Pindograma.

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