A aprovação da lei que legalizou o aborto na Argentina em dezembro de 2020 reacendeu o debate sobre o tema por toda a América Latina, inclusive no Brasil. Durante as últimas duas décadas, de acordo com dados da World Values Survey, países do continente se dividiram em dois grupos: um onde a opinião pública sobre o aborto se tornou mais progressista e outro onde a opinião pública permaneceu a mesma, ou até se intensificou no sentimento contrário à prática. O Brasil encontra-se no segundo grupo: a opinião dos brasileiros continua muito similar à do início dos anos 2000, o que dificulta a ampliação do direito ao abortamento.
Nos últimos 20 anos, Argentina, Chile e México tiveram uma diminuição significativa na rejeição absoluta ao aborto (a proporção de pessoas que, perguntadas sobre quanto o aborto é justificável em uma escala de 0 a 10, escolheram zero). Enquanto isso, a Colômbia e o Brasil não acompanharam essa tendência na mudança de opinião pública:
País | 2000-2004 | 2005-2009 | 2010-2014 | 2017-2020 | Queda na Rejeição desde 2005 |
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Argentina | 63,2% | 53,9% | 41,1% | 47,7% | 11,5% |
Chile | 65,7% | 57,7% | 43,3% | 36,3% | 37,1% |
México | 67,1% | 51,9% | 61,6% | 46,8% | 9,8% |
Brasil | — | 62,3% | 69,9% | 64,1% | −2,9% |
Colômbia | — | 73,6% | 73,3% | 71,5% | 2,9% |
Outros países da região também têm taxas altas de rejeição absoluta ao aborto, como a Bolívia (65,3%), Peru (63,5%), Equador (63,3%) e Nicarágua (76,3%).
De acordo com Gabriela Rondon, doutora em Direito e pesquisadora do Instituto de Bioética (Anis), a opinião pública quanto ao aborto depende de vários fatores particulares à situação de cada país, mas o cenário político e social são determinantes para como o público compreende o aborto. Dependendo de como o debate é pautado, o assunto é tratado como matéria de saúde pública ou tabu religioso.
No Brasil, Rondon explica que havia um debate nos anos 90, quando novos projetos de lei para aumentar as exceções à criminalização eram propostos. Mas a partir dos anos 2000, o legislativo tornou-se hostil a esses projetos. Para a pesquisadora, “a efervescência das bancada evangélica no Brasil, de vozes conservadoras no parlamento, paulatinamente forçou os movimentos feministas a uma redução de danos quanto à pauta do aborto, sem avanço”. Na eleição de 2010 a então presidenciável Dilma Rousseff assinou uma carta se comprometendo com a causa anti-abortista, parte de um esforço do Partido dos Trabalhadores quando estava no poder de manter o apoio de eleitores religiosos.
Quanto à recente legalização do aborto na Argentina, Rondon lembra que muitas líderes argentinas reconhecem que feministas brasileiras foram importantes para a legalização por lá. No entanto, Rondon explica que as argentinas avançaram devido a reformas políticas no país que incluíram cotas de participação para mulheres na política. O Congresso Nacional brasileiro por exemplo, é formado por só 15% de mulheres, uma alta histórica. Na Argentina, 40% dos parlamentares são mulheres.
“Lá, você vê muito mais mulheres, mas não só isso, muito mais jovens no parlamento, e isso muda a relação dos movimentos sociais com a institucionalidade. Claro que há muitos outros fatores. As feministas argentinas dizem, por exemplo, que alcançaram antes a despenalização social e agora a despenalização legal, mas a representação na política foi muito importante”.
A notícia de Buenos Aires trouxe o tema à tona por toda a América Latina. No México, o presidente Andres Manuel Lopez Obrador propôs fazer um referendo sobre o aborto e enfatizou que a decisão deve ser das mulheres mexicanas. No Chile, onde a criminalização do aborto foi uma das últimas decisões do ditador Augusto Pinochet, manifestantes usando os mesmos lenços verdes das ativistas argentinas buscam movimentar a pauta no Congresso. Nestes países há uma grande movimentação política, com apoio de figuras públicas importantes, como o próprio presidente argentino Alberto Fernández. No Brasil, este não é o caso.
Para Rondon, a menos que haja uma grande movimentação política pelo assunto, a pressão por ora ficará no judiciário brasileiro — e que isso tampouco trará mudanças rápidas. Ela explica que mesmo o julgamento sobre casos de anencefalia demorou quase 12 anos para ser decidido. “Estamos falando de fetos que não têm nenhuma chance de vida, e mesmo assim demorou porque não existiam as condições políticas para a decisão. A corte é um espaço político… E algumas perguntas simplesmente não são possíveis tendo em vista o cenário político. O Congresso Nacional não pergunta se a criminalização do aborto diminui o número de abortos. É efetivo? Não”.
Mesmo assim, a pesquisadora diz haver motivos para otimismo entre ativistas por direitos reprodutivos. Ela cita o caso da garota de 10 anos que buscou o aborto legalmente no Espírito Santo esse ano. “A narrativa desses que foram para a porta do hospital [grupo católico que tentava impedir o aborto legal] não foi a narrativa vencedora”. A imprensa noticiou o caso com favorabilidade à menina e a situação delicada na qual ela se encontrava.
Rondon entende que o aborto é um tema que mexe com as paixões das pessoas, com a religiosidade e crenças enraizadas, e que evidências não são o único caminho para mudar a opinião pública. A pesquisadora acredita que a atitude em relação a meninas e mulheres que precisam recorrer a um abortamento está se tornando mais empática, mesmo com um cenário político cada vez mais conservador. “Então por isso há esperança [para quem defende o aborto legal], mesmo num cenário que a gente acha que é politicamente muito árido, a gente tem visto giros muito importantes nesse tema”.
Quanto ao cenário politicamente árido, um levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar mostrou que a bancada evangélica, cuojs parlamentares são majoritariamente engajados contra a legalização do aborto, cresceu nas últimas eleições. Além disso, tendências de buscas no Google indicam que o interesse pelo tema surge apenas quando há episódios específicos de grande circulação na mídia, mas não cresceu ou se sustentou por grandes períodos de tempo. Por ora, o tema segue sendo uma pauta intermitente, que compete com outras prioridades imediatas da política brasileira.
A Argentina agora permite a interrupção voluntária da gravidez até as 12 semanas de gravidez em todo o país. Já no México, há distinções entre os diferentes estados do país: o Distrito Federal e o estado de Oaxaca reconhecem o direito ao abortamento até as 12 semanas de gestação, enquanto na maioria das outras unidades federativas, é permitido apenas em caso de risco de vida da gestante ou de estupro.
No Chile, a partir de 2017 exceções em casos de risco de vida ou estupro foram estabelecidas, derrogando a proibição completa da época Pinochet. No Brasil, desde 1940, abortamento é direito da gestante em casos onde a vida da mulher corre risco ou onde a gravidez foi causada por abuso sexual. E, desde 2012, o STF decidiu que também pode ocorrer legalmente quando o feto é anencéfalo, e portanto, não tem chances de sobreviver.
Segundo a mais recente Pesquisa Nacional de Aborto, publicada pelo Instituto de Bioética (Anis) e pela Universidade de Brasília em 2016, no Brasil “quase 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto” — seja de forma legal ou não.
Segundo a pesquisa, o aborto é frequente, ainda mais entre mulheres mais vulneráveis — as com menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Na América Latina, de acordo com um levantamento da Organização Mundial da Saúde e do Instituto Guttmacher, apenas um em cada quatro abortamentos foram realizados de acordo com as diretrizes e normas da OMS: por profissionais da saúde treinados, através de métodos seguros, em ambiente adequado.
Dados utilizados na matéria: World Values Survey.
Créditos da imagem: Fotomovimiento/Flickr.
Para reproduzir os números citados, o código e os dados podem ser encontrados aqui.
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