Nota do Editor: Querer investigar pesquisas autocontratadas não basta


TSE não deveria permitir que institutos declarem mais de 10% de suas pesquisas como autocontratadas
POR DANIEL FERREIRA • 08/11/2020

[Este texto representa a opinião do Pindograma.]

“O vice-procurador-geral eleitoral, Renato Brill de Góes, pediu a procuradores de todo o país que investiguem institutos de pesquisa que realizaram levantamentos de intenção de voto com recursos próprios”. É o que noticiou O Antagonista na última terça-feira, dia 3.

A medida é um passo bem-vindo no combate à desinformação eleitoral e à corrupção, embora atrasada e insuficiente. Para o Pindograma, uma reforma no registro de pesquisas eleitorais por parte do Tribunal Superior Eleitoral seria um antídoto muito mais efetivo contra o problema.

Por que investigar

Embora a Lei das Eleições exija que os institutos informem à Justiça Eleitoral quem contratou cada pesquisa através de um registro de pesquisas, as instituições brasileiras vêm permitindo que campanhas políticas burlem a lei através das autocontratações.

Teoricamente, empresas de pesquisa podem ter a si próprias como clientes. É o caso de institutos que publicam uma pesquisa por iniciativa própria para se autopromoverem ou de firmas que são ao mesmo tempo jornais e institutos de pesquisa. Nestes casos, a empresa diz à Justiça Eleitoral — com razão — que ela contratou um serviço dela própria.

O problema é que, sem fiscalização, muitos institutos passaram a registrar a maior parte de suas pesquisas como autocontratadas, mesmo quando há um cliente pagando por elas. Este é o caso da Real Time Big Data, empresa de pesquisas fundada em 2018. Embora tenha feito dezenas de pesquisas para a Rede Record em 2018 e 2020, o instituto declarou à Justiça Eleitoral ter encomendado e pago por todas as próprias pesquisas.

Isso não é um caso único. Entre 2012 e 2018, 30% das pesquisas registradas no Brasil foram declaradas como autocontratadas, e em 2020, esse número chegou a 64%. Segundo profissionais que atuam no mercado, porém, a grande maioria dessas pesquisas são pagas por campanhas políticas. Um estatístico ouvido pelo Pindograma chegou a estimar que 95% delas se encaixassem nessa descrição. Com isso, milhares de pesquisas são publicadas sem que o eleitor saiba que elas podem ter sido pagas por candidaturas interessadas nos resultados.

Além de serem ruins para a transparência, pesquisas autocontratadas também são um veículo para a corrupção. Desde 2016, o Tribunal Superior Eleitoral exige que empresas de pesquisa divulguem a nota fiscal pelo serviço, mas, caso a pesquisa seja autocontratada, a nota deixa de ser exigida. A leniência da Justiça Eleitoral com as autocontratações deixa a porta aberta para crimes de caixa dois ou sonegação fiscal em campanhas eleitorais, mesmo em um setor que poderia ser fiscalizado com facilidade. A título de exemplo, o Pindograma revelou como havia um esquema de desvio de recursos de pequenas prefeituras no interior de São Paulo por trás de institutos que autocontratavam todas suas pesquisas.

O problema do Ministério Público

É bem-vindo que o Ministério Público Eleitoral dê a devida atenção às pesquisas autocontratadas, que em sua maioria burlam os requisitos de transparência impostos pela Lei das Eleições de 1997. Caso os institutos estejam mentindo à Justiça Eleitoral sobre quem os contratou, seus proprietários poderiam ser enquadrados no crime de falsidade ideológica eleitoral. Um aumento de condenações desse tipo provavelmente inibiria a prática das autocontratações.

No entanto, é pouco plausível que a boa vontade do vice-procurador-geral eleitoral faça o número de condenações crescer, dadas as amarras institucionais da Justiça Eleitoral.

A primeira amarra é jurídica. Existe uma jurisprudência no direito eleitoral segundo a qual ações envolvendo pesquisas eleitorais irregulares “perdem o objeto” após a eleição. Em outras palavras, é raro que juízes condenem institutos por irregularidades em pesquisas depois que a eleição tenha terminado. Dado que investigações relacionadas a fraudes de institutos de pesquisa tendem a demorar mais que a temporada eleitoral, é bem provável que uma juíza nem chegue a analisar no mérito uma denúncia do MP relacionada às pesquisas autocontratadas.

A segunda amarra é a descentralização da Justiça Eleitoral. Em eleições municipais, o Ministério Público só pode processar um instituto na cidade onde uma pesquisa irregular tenha sido publicada. Ou seja, caso uma empresa registre pesquisas autocontratadas em 60 cidades diferentes, o MP teria que abrir uma investigação separada em cada uma dessas cidades para apurar as irregularidades — algo que, sem dúvida, oneraria as promotorias demasiadamente.

A terceira amarra é a da impunidade a despeito de condenação. O Pindograma noticiou o caso de um instituto de pesquisas condenado numerosas vezes pela Justiça Eleitoral por produzir pesquisas fraudulentas. No entanto, seus proprietários jamais pagaram as multas impostas e continuaram publicando pesquisas nos anos seguintes. Condenações por crimes eleitorais significam pouco se as penas previstas nunca são impostas.

O TSE precisa agir

Existe uma solução para o problema das autocontratações bem mais efetiva que esperar os institutos temerem uma condenação por falsidade ideológica: uma reforma do registro de pesquisas eleitorais por parte do órgão que o administra: o Tribunal Superior Eleitoral.

Hoje não existe controle algum sobre o que se declara ao TSE em termos de pesquisas. No registro, se encontra de tudo: de pesquisas através de enquete no Facebook até planos amostrais idênticos em dezenas de cidades diferentes. A Justiça Eleitoral só intervém nesses casos se provocada pelo Ministério Público ou por uma campanha que se sinta prejudicada pelo resultado.

Há um bom motivo para que o braço administrativo do TSE não exerça controle sobre o registro de pesquisas: não é desejável que um burocrata do Tribunal tenha o poder de censurar pesquisas arbitrariamente, sem qualquer pedido da sociedade civil. Mas se regido por critérios objetivos, algum controle direto por parte do TSE seria benéfico para o mercado de pesquisas.

Esse tipo de controle poderia ser aplicado às autocontratações. O TSE poderia permitir que até 10% das pesquisas de uma única empresa fossem autocontratadas, já que um instituto dificilmente gastaria mais que 10% de seu orçamento em autopromoção. Passando desse limite, o TSE impediria que qualquer pesquisa do instituto fosse registrada e, portanto, divulgada. Pelo menos 90% de suas pesquisas teriam de cumprir os usuais requisitos de transparência, como a divulgação de nota fiscal.

Essa regra, claro, só deveria valer para institutos que registraram dez ou mais pesquisas em um dado ano de eleição. Isso evitaria que fossem prejudicadas as consultorias que não vivem de pesquisas eleitorais mas as fazem para ganhar publicidade; ou as pequenas empresas que são jornal e instituto de pesquisa ao mesmo tempo.

Hoje os dados abertos permitem que a sociedade civil encontre indícios de quais institutos produzem pesquisas para campanhas políticas. A reforma do registro aqui proposta permitiria à sociedade civil expor que campanhas são essas. É um passo mais eficiente que esperar essas informações aparecerem, perdidas, nas páginas do Diário Oficial do Ministério Público.

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Daniel Ferreira é editor do Pindograma.

Nota do Editor: Querer investigar pesquisas autocontratadas não basta

TSE não deveria permitir que institutos declarem mais de 10% de suas pesquisas como autocontratadas

POR DANIEL FERREIRA

08/11/2020

[Este texto representa a opinião do Pindograma.]

“O vice-procurador-geral eleitoral, Renato Brill de Góes, pediu a procuradores de todo o país que investiguem institutos de pesquisa que realizaram levantamentos de intenção de voto com recursos próprios”. É o que noticiou O Antagonista na última terça-feira, dia 3.

A medida é um passo bem-vindo no combate à desinformação eleitoral e à corrupção, embora atrasada e insuficiente. Para o Pindograma, uma reforma no registro de pesquisas eleitorais por parte do Tribunal Superior Eleitoral seria um antídoto muito mais efetivo contra o problema.

Por que investigar

Embora a Lei das Eleições exija que os institutos informem à Justiça Eleitoral quem contratou cada pesquisa através de um registro de pesquisas, as instituições brasileiras vêm permitindo que campanhas políticas burlem a lei através das autocontratações.

Teoricamente, empresas de pesquisa podem ter a si próprias como clientes. É o caso de institutos que publicam uma pesquisa por iniciativa própria para se autopromoverem ou de firmas que são ao mesmo tempo jornais e institutos de pesquisa. Nestes casos, a empresa diz à Justiça Eleitoral — com razão — que ela contratou um serviço dela própria.

O problema é que, sem fiscalização, muitos institutos passaram a registrar a maior parte de suas pesquisas como autocontratadas, mesmo quando há um cliente pagando por elas. Este é o caso da Real Time Big Data, empresa de pesquisas fundada em 2018. Embora tenha feito dezenas de pesquisas para a Rede Record em 2018 e 2020, o instituto declarou à Justiça Eleitoral ter encomendado e pago por todas as próprias pesquisas.

Isso não é um caso único. Entre 2012 e 2018, 30% das pesquisas registradas no Brasil foram declaradas como autocontratadas, e em 2020, esse número chegou a 64%. Segundo profissionais que atuam no mercado, porém, a grande maioria dessas pesquisas são pagas por campanhas políticas. Um estatístico ouvido pelo Pindograma chegou a estimar que 95% delas se encaixassem nessa descrição. Com isso, milhares de pesquisas são publicadas sem que o eleitor saiba que elas podem ter sido pagas por candidaturas interessadas nos resultados.

Além de serem ruins para a transparência, pesquisas autocontratadas também são um veículo para a corrupção. Desde 2016, o Tribunal Superior Eleitoral exige que empresas de pesquisa divulguem a nota fiscal pelo serviço, mas, caso a pesquisa seja autocontratada, a nota deixa de ser exigida. A leniência da Justiça Eleitoral com as autocontratações deixa a porta aberta para crimes de caixa dois ou sonegação fiscal em campanhas eleitorais, mesmo em um setor que poderia ser fiscalizado com facilidade. A título de exemplo, o Pindograma revelou como havia um esquema de desvio de recursos de pequenas prefeituras no interior de São Paulo por trás de institutos que autocontratavam todas suas pesquisas.

O problema do Ministério Público

É bem-vindo que o Ministério Público Eleitoral dê a devida atenção às pesquisas autocontratadas, que em sua maioria burlam os requisitos de transparência impostos pela Lei das Eleições de 1997. Caso os institutos estejam mentindo à Justiça Eleitoral sobre quem os contratou, seus proprietários poderiam ser enquadrados no crime de falsidade ideológica eleitoral. Um aumento de condenações desse tipo provavelmente inibiria a prática das autocontratações.

No entanto, é pouco plausível que a boa vontade do vice-procurador-geral eleitoral faça o número de condenações crescer, dadas as amarras institucionais da Justiça Eleitoral.

A primeira amarra é jurídica. Existe uma jurisprudência no direito eleitoral segundo a qual ações envolvendo pesquisas eleitorais irregulares “perdem o objeto” após a eleição. Em outras palavras, é raro que juízes condenem institutos por irregularidades em pesquisas depois que a eleição tenha terminado. Dado que investigações relacionadas a fraudes de institutos de pesquisa tendem a demorar mais que a temporada eleitoral, é bem provável que uma juíza nem chegue a analisar no mérito uma denúncia do MP relacionada às pesquisas autocontratadas.

A segunda amarra é a descentralização da Justiça Eleitoral. Em eleições municipais, o Ministério Público só pode processar um instituto na cidade onde uma pesquisa irregular tenha sido publicada. Ou seja, caso uma empresa registre pesquisas autocontratadas em 60 cidades diferentes, o MP teria que abrir uma investigação separada em cada uma dessas cidades para apurar as irregularidades — algo que, sem dúvida, oneraria as promotorias demasiadamente.

A terceira amarra é a da impunidade a despeito de condenação. O Pindograma noticiou o caso de um instituto de pesquisas condenado numerosas vezes pela Justiça Eleitoral por produzir pesquisas fraudulentas. No entanto, seus proprietários jamais pagaram as multas impostas e continuaram publicando pesquisas nos anos seguintes. Condenações por crimes eleitorais significam pouco se as penas previstas nunca são impostas.

O TSE precisa agir

Existe uma solução para o problema das autocontratações bem mais efetiva que esperar os institutos temerem uma condenação por falsidade ideológica: uma reforma do registro de pesquisas eleitorais por parte do órgão que o administra: o Tribunal Superior Eleitoral.

Hoje não existe controle algum sobre o que se declara ao TSE em termos de pesquisas. No registro, se encontra de tudo: de pesquisas através de enquete no Facebook até planos amostrais idênticos em dezenas de cidades diferentes. A Justiça Eleitoral só intervém nesses casos se provocada pelo Ministério Público ou por uma campanha que se sinta prejudicada pelo resultado.

Há um bom motivo para que o braço administrativo do TSE não exerça controle sobre o registro de pesquisas: não é desejável que um burocrata do Tribunal tenha o poder de censurar pesquisas arbitrariamente, sem qualquer pedido da sociedade civil. Mas se regido por critérios objetivos, algum controle direto por parte do TSE seria benéfico para o mercado de pesquisas.

Esse tipo de controle poderia ser aplicado às autocontratações. O TSE poderia permitir que até 10% das pesquisas de uma única empresa fossem autocontratadas, já que um instituto dificilmente gastaria mais que 10% de seu orçamento em autopromoção. Passando desse limite, o TSE impediria que qualquer pesquisa do instituto fosse registrada e, portanto, divulgada. Pelo menos 90% de suas pesquisas teriam de cumprir os usuais requisitos de transparência, como a divulgação de nota fiscal.

Essa regra, claro, só deveria valer para institutos que registraram dez ou mais pesquisas em um dado ano de eleição. Isso evitaria que fossem prejudicadas as consultorias que não vivem de pesquisas eleitorais mas as fazem para ganhar publicidade; ou as pequenas empresas que são jornal e instituto de pesquisa ao mesmo tempo.

Hoje os dados abertos permitem que a sociedade civil encontre indícios de quais institutos produzem pesquisas para campanhas políticas. A reforma do registro aqui proposta permitiria à sociedade civil expor que campanhas são essas. É um passo mais eficiente que esperar essas informações aparecerem, perdidas, nas páginas do Diário Oficial do Ministério Público.

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Daniel Ferreira

é editor do Pindograma.

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